Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Turbulência que se teme em outubro não vem
da ação das Forças Armadas
A turbulência que se teme nas eleições não
vem da ação das Forças Armadas, mas de sua omissão. No roteiro traçado por um
ex-ministro da Defesa, ainda hoje um dos principais interlocutores civis no
meio militar, uma eventual derrota do presidente Jair Bolsonaro levaria seus
apoiadores mais exaltados a uma tentativa de invasão de prédios públicos,
notadamente o Tribunal Superior Eleitoral, que divulga o resultado oficial da
disputa.
O governador do Distrito Federal, Ibaneis
Rocha, face ao risco, pediria ao presidente da República uma Operação de
Garantia da Lei e da Ordem (GLO). O comandante em chefe a recusaria, por óbvio,
principal beneficiário que é de uma baderna que reside, por enquanto, no campo
da imaginação.
Como qualquer um dos Três Poderes pode
conceder a GLO, o governador apelaria, então, à presidente do Supremo Tribunal
Federal, cujo prédio também é alvo. Não falta quem, além das estátuas da
liberdade em frente às lojas da Havan, queira dar ao Brasil uma réplica do
06/01/2021.
A ministra Rosa Weber não hesitaria em concedê-la, mas o comandante em chefe pode resistir para evitar que, a exemplo do que aconteceu na invasão do Capitólio, em Washington, a tropa atue na contenção dos baderneiros.
A sucessão de autoridades americanas que já
reiterou confiança no sistema de votação brasileiro faz com que este roteiro se
mantenha, por enquanto, no campo da ficção. Só a ameaça de baderna permanece
crível.
Mas que grupo teria hoje organização e
tática capazes de perturbar a ordem pública? Os black blocs já almejam essa
condição, mas só enquanto o desemprego estava no piso de 4% e a inflação anual
rodava na casa dos 5%, nos idos de 2013. Depois que o presidente Jair Bolsonaro
tomou o poder e levou o gás de cozinha a R$ 130, perderam o interesse.
Chegaram a dar as caras no 1º de Maio na
França, logo depois do segundo turno que reelegeu o presidente Emmanuel Macron.
Quebraram vidraças de lojas do McDonald’s, de bancos, companhias de seguro e
imobiliárias. Foram contidos pela polícia, e não se falou mais nisso.
Bruno Paes Manso, que divide com Esther
Solano e Willian Novaes a autoria de “Mascarados - a verdadeira história dos
adeptos da tática black bloc” (Geração Editorial, 2014), conta que o movimento,
surgido na Alemanha nos anos 1970 com um discurso libertário e anticapitalista,
perdeu tanta força no Brasil que findou na invasão de um canil em São Roque.
Já foi outro agrupamento, este mais à
direita, o Movimento Brasil Livre, que liderou as manifestações que resultaram
no impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, e chegou a formar bancada no
Congresso com cinco deputados, dois senadores e deputados estaduais como Arthur
do Val (União Brasil), o “Mamãe Falei”, que acabaria cassado depois de vídeo em
que disse que as ucranianas eram “fáceis porque pobres”.
Paes Manso não tem dúvida de que, se existe
alguma arregimentação civil contra as eleições, esta passa pelos associados nos
clubes de tiro, os CACs (Colecionador, Atirador Desportivo e Caçador). São
eles, diz, que partilham a mesma crença de Bolsonaro de que povo livre é povo
armado.
O retrospecto dos episódios de perturbação
da ordem ao longo deste governo confirma o prumo do pesquisador. A começar pelo
próprio governador em cujo colo os perturbadores podem explodir. Quando o
acampamento da ativista Sara Giromini, conhecida como Sara Winter, líder dos
“300 do Brasil”, movimento que se propunha a invadir o Congresso, foi
desmontado em junho de 2020, um de seus integrantes, o fazendeiro goiano André
Luiz Paula Costa, divulgou um vídeo de ameaças a Ibaneis. Em depoimento à
Delegacia de Repressão a Crimes Cibernéticos da Polícia Civil do Distrito
Federal, ele declarou a posse de seis armas legitimadas pelo registro de
atirador.
Em novembro daquele ano, o engenheiro
paranaense de 58 anos Luiz Antonio Iurkiewiecz lançou um Renault Duster branco
contra a sede do Ministério da Justiça pensando que ficava ali a sede do
Supremo Tribunal Federal. Como era madrugada, ele abandonou o carro e só foi
preso no dia seguinte num hotel com uma espingarda calibre 12. Réu por crime
contra a segurança nacional, depois de confessar ter agido por “inconformismo
político” contra o que considerava uma “ditadura do Judiciário”. Iurkiewiecz
também tinha registro como CAC.
Com o início da campanha presidencial, o
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva tornou-se o alvo preferencial. Em março
deste ano, um homem divulgou vídeo praticando tiro ao alvo na cidade de
Gravatal (SC) com narração: “Bora petezada de Gravatal... olha ali um petista
passando”. Manteve a imagem do rosto borrada, recurso ao qual a polícia civil
do estado atribui as dificuldades de identificá-lo.
Nem sempre a identificação gera punições.
No ano passado, José Sabatini, empresário de Artur Nogueira, no interior de São
Paulo, divulgou vídeo em que, depois de praticar tiro ao alvo enrolado numa
bandeira do Brasil, faz uma ameaça ao ex-presidente: “Se você não devolver os
R$ 84 bilhões que você roubou do fundo de pensão dos trabalhadores, você vai
ter problema”. “Não tenta transformar meu país numa Venezuela. Eu vou derramar
meu sangue, mas vou lutar pelo meu país. A minha parte eu vou fazer.”
A polícia civil encontrou um revólver
calibre 38 e uma espingarda calibre 12 na casa do empresário. O PT tentou uma
queixa-crime, mas o Ministério Público rejeitou a denúncia sob o argumento de
que o empresário não tinha consciência de que a acusação feita contra o
ex-presidente era falsa. A única punição foi uma liminar, da justiça de
primeira instância de São Bernardo do Campo, que proíbe o compartilhamento do
vídeo sob pena de multa diária de até R$ 100 mil.
Autor de “Armas de fogo: gatilho da
violência no Brasil” (Telha, 2021) e pesquisador do Instituto Sou da Paz, Bruno
Langiani acompanha o associativismo desses clubes de tiro nos últimos anos e
não tem dúvida em afirmar que 95% são bolsonaristas fervorosos.
Identifica o crescimento desses grupos a
partir de maio de 2019, quando uma portaria presidencial escancarou a compra de
armas. Até então, o Estatuto do Desarmamento previa que o porte seria concedido
aos maiores de 25 anos que comprovassem capacidade técnica e psicológica para
uso de arma de fogo, não tivessem antecedentes criminais nem respondessem a
processos criminais. A partir deste decreto (9.785), associados de clubes de
tiro, advogados, caminhoneiros e residentes em áreas rurais ficaram dispensados
de comprovar esses critérios.
O porte de armas explodiu. Dados obtidos
por Langiani em novembro de 2021, com base na Lei de Acesso à Informação, dão
conta de 794 mil armas em mãos de CACs, o que ultrapassa, com folga, a soma de
armas em mãos de policiais militares (583.498) e civis (172.131) no país.
Paralelamente, houve um crescimento
exponencial dos clubes de tiro. De julho de 2019 até novembro de 2021, o número
de CPFs inscritos nessas unidades, segundo os dados compilados por Langiani, cresceu
194%.
Partes do decreto acabariam suspensas pelo
Supremo Tribunal Federal, mas sua vigência, ao longo de quase dois anos,
lastreou essa expansão. O caminho mais fácil para o porte de arma, diz
Langiani, passou a ser a inscrição num clube de tiro.
Com a decisão do Supremo, a saída dos CACs
foi garantir a alteração legislativa. O projeto passou na Câmara dos Deputados,
mas esbarrou no Senado. O freio do Supremo funcionou para dar ainda mais
aderência entre os propósitos dos clubes de tiro e aqueles do presidente Jair
Bolsonaro. Tanto uns quanto o outro têm o STF por algoz.
Politicamente, a associação mais
representativa dos CACs é o Movimento Pró-Armas. Seu principal dirigente,
Marcos Pollon, advogado do Mato Grosso do Sul, já esteve com o presidente do Senado,
Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e com o presidente da Comissão de Constituição e
Justiça (CCJ) da Casa, Davi Alcolumbre, e faz lives com o deputado Eduardo
Bolsonaro (PL-SP), o filho do presidente mais próximo da indústria de armas no
Brasil e no exterior.
Esse grupo, na avaliação de Langiani,
substituiu o Viva Brasil, de Bene Barbosa, que foi muito ativo à época do
Estatuto do Desarmamento, mas hoje estaria mais empenhado na expansão dos seus
negócios no comércio de armas do que na articulação política do tema.
A liberação desenfreada já preocupa até
setores que cultivam afinidades com o presidente da República, como policiais,
cujos carros têm blindagens que já não os protegem de alguns calibres
liberados. Além da quantidade de armas em circulação, preocupa ainda a
apreensão de armas revendidas por CACs para as milícias e para o crime
organizado.
O Pró-Armas é o que há de mais parecido, no
Brasil, com a NRA, sigla em inglês da poderosa Associação Nacional do Rifle,
dos Estados Unidos, responsável por barrar todas as iniciativas legislativas de
controle da posse e do porte de armas naquele país.
Assim como não foi a NRA que liderou a
invasão do Capitólio, Langiani tampouco acredita que o Pró-Armas tenha
disciplina ou treinamento para uma ação organizada contra instituições como o
TSE ou o STF nas eleições. Pelo menos não atuaram dessa forma no Sete de
Setembro. Até fizeram convocações e caravanas, mas sem treinamento ou
mobilização específicos.
Pelo calibre do armamento liberado e pelo perfil daqueles que hoje têm acesso a arsenais que podem chegar a 60 armas, Langiani diz que não é preciso um grande número de pessoas para perturbar a ordem. Estão tão armados e radicalizados que 1% deles (7 mil pessoas), devidamente insuflado pelo presidente da República, já formam um contingente capaz de fazer um tremendo estrago.
Um comentário:
Eu penso que vai ter tiroteio e morte,tomara que eu esteja errado.
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