Folha de S. Paulo
Desobediência parece ensaio para eventual
confronto entre STF e Bolsonaro
Um dos mais terríveis monstros da mitologia grega, a Hidra de Lerna tinha corpo de dragão e várias cabeças de serpente. Vivia nos pântanos da Argólida e seu hálito era venenoso. Pior, ela era praticamente imortal, já que, quando uma de suas cabeças era destruída, surgiam duas em seu lugar. O monstro foi derrotado por Hércules, que, depois de esmagar inutilmente muitas cabeças, decidiu mudar de tática. Pediu a seu sobrinho Iolau que queimasse o pescoço do bicho logo após o corte de uma cabeça. Com a ferida cauterizada, elas não se regeneravam. Deixo para os fãs da psicanálise especular sobre o significado simbólico do monstro.
Mesmo que a operação policial que matou 26 pessoas em Vila Cruzeiro, no Rio, não tivesse marcas de chacina, denotaria uma forma burra de combater o crime organizado. Há situações, como a de "serial killers" ou ladrões de obras de arte, em que, capturando o bandido, a ameaça cessa. Esses são os criminosos, digamos, não fungíveis. Mas o enfrentamento de quadrilhas remete a um tipo diferente, que lembra a Hidra.
Quando a polícia prende ou mata um
delinquente, surgem no mesmo instante vários outros para disputar seu lugar na
hierarquia da organização. O processo seletivo nem sempre será pacífico. Mais,
o novo líder tende a chegar querendo exibir suas credenciais, o que
frequentemente significa mais violência. O embate direto, à bala,
definitivamente não é a melhor estratégia para a polícia. A exemplo de
Hércules, ela teria de repensar sua tática. Precisaria evitar a multiplicação
inútil de violência e centrar-se em ações que reduzam de fato o poder das
quadrilhas.
Assusta-me um pouco a passividade do STF. A polícia fluminense vem repetidamente ignorando a ordem da corte para conter o uso de força letal e nada acontece. Meu receio é que a desobediência seja uma espécie de ensaio para um eventual confronto próximo entre STF e Bolsonaro.
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