quinta-feira, 11 de agosto de 2022

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Editoriais / Opiniões

Alívio com ressalvas

Folha de S. Paulo       

Deflação interrompe alta do IPCA, mas tem causas transitórias e efeito desigual

deflação de 0,68% em julho, medida nos preços ao consumidor, representa um alívio parcial no custo de vida depois de quase dois anos de aumentos acelerados, especialmente em produtos de primeira necessidade como alimentos, energia elétrica e combustíveis.

O resultado, que fez a variação acumulada do IPCA em 12 meses cair de 11,89% para 10,07%, decorre principalmente da queda de 4,35% nos preços administrados —grupo que inclui combustíveis, barateados após o corte do ICMS estadual aprovado no Congresso.

O movimento, ademais, deve prosseguir neste agosto, com a retração das cotações do petróleo no mercado internacional.

A valorização recente do real e a queda de preços de matérias-primas foram outros fatores positivos, que permitiram quedas de preços de alimentos in natura (4,38%) e produtos industriais (0,11%).

De outro lado, ainda há pressões em setores que mostram maior grau de inércia, como serviços, que tem peso de 34% no IPCA e subiram 0,8%. Em tais recortes, a inflação ainda caminha em ritmo muito acima das metas de 3,5% para este ano e 3,25% para 2023, o que sugere que os juros vão permanecer elevados ainda por muitos meses.

Um sinal nessa direção foi dado pelo Banco Central, que elevou a taxa Selic para 13,75% anuais na semana passada e indicou estabilidade nesse nível até que seja observada inflexão clara do IPCA em direção aos objetivos da instituição.

A trégua de julho é sem dúvida bem-vinda, embora incipiente e por ora menos impactante para a população de baixa renda. No caso de São Paulo, segundo medida da Fipe que estratifica a inflação por faixa de renda, a deflação do mês chegou apenas para as famílias com renda mensal acima de oito salários mínimos (R$ 9.696).

O caminho é longo até uma melhora mais palpável para os mais pobres, o que depende de preços menores nos itens essenciais, sobretudo alimentação no domicílio —que tem peso de 15% no IPCA e acumula alta de 11,84% neste ano e de 17,51% em 12 meses.

Foi justamente a combinação de elevação dos preços de artigos de primeira necessidade no ano passado com letargia do emprego que fez a pobreza aumentar no país.

Segundo o boletim Desigualdade nas Metrópoles, o número de pessoas em situação de pobreza nas 22 principais áreas metropolitanas chegou a 19,8 milhões em 2021. Trata-se da maior cifra da série histórica iniciada em 2012.

Reverter esse quadro demanda auxílio social focado em quem precisa e uma política econômica sólida, que permita controle da inflação e continuidade da geração de emprego, que felizmente ganhou força nos últimos meses.

De casa para o crime

Folha de S. Paulo

Dados de SP mostram que residência é alvo principal em roubos e furtos de armas

Depósito de armas apreendidas na Divisão de Produtos Controlados da

Na mitologia da extrema direita global, "cidadãos de bem" armados tornam as sociedades mais seguras. Já a ciência busca analisar os fenômenos da forma mais abrangente possível, não apenas em seus recortes cinematográficos.

E há farta literatura científica a demonstrar que, quando aumenta o número de armas de fogo em poder da população, o que se amplia de forma dramática não são os atos de heroísmo, mas os suicídios, os acidentes e os homicídios em conflitos interpessoais, muitas vezes por motivos banais.

Nesta semana, por exemplo, o noticiário foi ocupado pelo caso do campeão mundial de jiu-jítsu Leandro Lo, assassinado por um policial após um desentendimento num show em São Paulo.

Pouco antes, houve o assassinato do guarda municipal petista Marcelo Arruda, de Foz do Iguaçu (PR), baleado por um policial penal bolsonarista durante uma briga.

O armamentista convicto costuma dizer que as armas são apenas instrumento —o que importaria de fato seriam as decisões pessoais. O argumento talvez valha para o suicídio, mas não para os acidentes nem para os homicídios em momentos de agressão impensada.

No caso brasileiro, os artefatos em posse de civis também ajudam a abastecer os arsenais dos criminosos. Como mostrou reportagem da Folha, nos últimos cinco anos no estado de São Paulo bandidos surrupiaram 11.985 armas, das quais a metade estava em residências.

Ou seja, mesmo a menos polêmica das posses, a do produto que fica guardado dentro de casa, ainda acaba favorecendo o crime. O restante foi subtraído de locais como estabelecimentos comerciais (25,5%), veículos em via pública (16,8%) e órgãos públicos (5,8%).

Delinquentes já miram as residências dos CACs (colecionadores, atiradores esportivos e caçadores), por saberem que ali são grandes as chances de encontrar muitas armas, por vezes com grande poder de fogo, num único local.

ofensiva armamentista promovida por Jair Bolsonaro (PL) foi levada a cabo basicamente com regulamentação infralegal, sem passar pelo crivo do Congresso Nacional. A conformidade de tais normas com o Estatuto do Desarmamento ainda está por ser julgada pelo Supremo Tribunal Federal.

De mais positivo, isso significa que um próximo presidente —mais criterioso na definição de políticas públicas, espera-se— não terá dificuldade em revogar as medidas.

A sociedade como protagonista

O Estado de S. Paulo

Como lembrou Fábio Barbosa, sensibilidade social não é monopólio da esquerda, e a direita tem legitimidade para ajudar a sociedade a recobrar as rédeas de seu destino

O presidente da Natura, Fábio Barbosa, disse recentemente em entrevista ao Estadão que a esquerda “não tem o monopólio de querer o bem da sociedade”. Há tempos a esquerda brasileira vem construindo essa mitologia a respeito de sua inata sensibilidade social, em profundo contraste com o que seria o patológico desdém da direita em relação aos pobres. “Eu me incomodo muito com a crítica de que pessoas de direita, no sentido da orientação econômica, não têm sensibilidade, o que não é verdade”, disse o empresário, expressando corajosamente um desconforto que certamente não é só dele.

A liderança de Lula da Silva nas pesquisas de intenção de voto, com a perspectiva real de uma vitória do petista na eleição presidencial de outubro, deu novo vigor a essa retórica esquerdista. Como se o desastre das administrações petistas jamais tivesse acontecido, Lula se apresenta como o único capaz de salvar o povo ora esfolado pelo ultradireitismo cruel do presidente Jair Bolsonaro.

O darwinismo social de Bolsonaro e do ministro da Economia, Paulo Guedes, dá algum sentido ao discurso de Lula – afinal, esse tenebroso governo, que só se interessa pelos pobres na exata medida de seus objetivos eleitorais, se apresenta como perfeito contraponto ao esquerdismo petista. Por esse motivo, é muito bom que a direita brasileira que não se identifica com o bolsonarismo, isto é, que não aprova a truculência, a desordem e a desumanidade do atual presidente, reclame lugar nos debates defendendo seus verdadeiros ideais liberais – e, assim, oferecendo alternativas civilizadas e racionais ao País.

Se o extremismo bolsonarista não foi capaz de cumprir sua retumbante promessa de acabar com o atraso brasileiro – e as pesquisas parecem indicar que isso já ficou claro, há bastante tempo, para a maioria do eleitorado –, isso não significa que o País esteja condenado a, em compensação, aceitar que a única forma de içá-lo do abismo social no qual despencou é o modelo lulopetista de gastança e irresponsabilidade.

Ora, a fome e a miséria a que estão condenados milhões de brasileiros não começaram ontem. São fruto de um processo de degradação da administração pública e da política que, a bem da verdade, se origina de uma ideia equivocada de papel do Estado – que no lulopetismo, nunca é demais lembrar, chegou ao seu estado da arte.

Para os adeptos da seita de Lula da Silva, o Estado é o princípio e o fim – e tudo o mais vai necessariamente a seu reboque. Criam-se legiões de dependentes desse Estado, dos mais pobres moradores nos confins do Brasil aos empresários adictos de favores e isenções. Retira-se da sociedade o ímpeto do desenvolvimento por sua própria iniciativa e risco. Anestesia-se o debate sobre os rumos do País, restrito à nomenklatura do partido que se pretende hegemônico e de seus satélites regiamente remunerados com dinheiro público.

Por esse motivo, é crucial que a direita, como fez Fabio Barbosa na entrevista ao Estadão, defenda a “sociedade aberta” – aquela que, na definição de Karl Popper, tem consciência de suas falhas e em que seus integrantes, por esse motivo, são livres para discutir civilizadamente as maneiras de superá-las. Para o bolsonarismo e o lulopetismo, o debate, quando existe, está limitado pelo autoritarismo messiânico de seus líderes, que reduzem tudo a um embate existencial entre o bem e o mal, ou entre “nós” e “eles” – simplismo de grande apelo popular que, no entanto, é incapaz de encaminhar soluções reais para problemas complexos.

Não há fórmula mágica para escapar da armadilha do populismo, e é compreensível que haja um desânimo de parte da sociedade com a degradação da democracia e, como consequência, com a aparente incapacidade do País de sair de seu labirinto histórico, marcado por inúmeras “décadas perdidas”. Mas, ao contrário das aparências, o Brasil não está condenado a escolher entre um populista de extrema direita e um demagogo estatólatra. Como sugeriu Fábio Barbosa, é preciso estimular a sociedade a ter coragem de ser protagonista de seu destino.

Mais um vexame do Ministério da Defesa

O Estado de S. Paulo

A descoberta de que militar designado para fiscalizar as urnas é militante bolsonarista e disseminador de ‘fake news’ expõe os riscos de contaminação política das Forças Armadas

O Ministério da Defesa pretende “auditar” as eleições de 2022 e cogita até realizar uma “apuração paralela” dos votos com base nos boletins impressos pelas urnas eletrônicas, ao arrepio da Constituição, da Lei Eleitoral e das diretrizes de Defesa Nacional. Todo esse desvio da ordem jurídica tem ocorrido, lamentavelmente, apenas para dar ao presidente Jair Bolsonaro elementos para lançar suspeitas absurdas sobre o sistema eleitoral e, assim, contestar o resultado da eleição presidencial caso seja derrotado. Não é essa a atribuição do Ministério da Defesa, como órgão de governo, nem muito menos a das Forças Armadas, como instituições de Estado.

Além de flagrantemente inconstitucional, a missão extravagante da Defesa chega a ser embaraçosa. Depois de ter solicitado acesso “urgentíssimo” ao código-fonte das urnas eletrônicas sem nenhuma necessidade, pois o referido código está disponível desde outubro do ano passado, o Ministério da Defesa teve exposta publicamente sua incapacidade de controlar o comportamento do grupo de militares designados para atuar na Comissão de Transparência Eleitoral (CTE) do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Na segunda-feira passada, o presidente do TSE, ministro Edson Fachin, e seu vice, ministro Alexandre de Moraes, enviaram um ofício ao ministro da Defesa comunicando o afastamento imediato do coronel Ricardo Sant’Anna, lotado na CTE, em virtude de seu mau comportamento nas redes sociais digitais. O militar, um dos indicados pelo Comando de Defesa Cibernética (ComDCiber) do Exército para analisar a higidez dos códigos-fonte dos quatro sistemas eleitorais, publicou em seus perfis pessoais nas redes uma série de mentiras sobre as urnas eletrônicas e sobre adversários políticos de Bolsonaro. Não é um comportamento esperado de um militar e, menos ainda, de alguém a quem foi confiada a importantíssima tarefa de atestar a segurança do sistema eletrônico de votação.

O Ministério da Defesa informou que já tinha a intenção de afastar o coronel Ricardo Sant’Anna da CTE desde a semana passada. Não o fez, segundo apurou o Estadão, porque não se chegou ao nome de um substituto. Descobriu-se que o militar indicado pelo Comando do Exército para ocupar a vaga de Ricardo Sant’Anna, o tenente-coronel Gleyson Azevedo da Silva, também é contumaz em publicar conteúdo de viés político-eleitoral nas redes sociais.

Tudo isso já seria suficientemente grave se, em vez de militar, o militante travestido de fiscal do Ministério da Defesa fosse civil. Afinal, dele se esperava total isenção para verificar a existência de eventuais problemas no sistema de votação. Sendo um militar, contudo, a situação é ainda mais reprovável, pois os integrantes das Forças Armadas não podem fazer militância política. A razão é óbvia: as Forças Armadas, como instituições de Estado, devem ser rigorosamente apolíticas, e os militares, nessa condição, devem guardar para si suas preferências políticas. Permitir o contrário é abrir as portas dos quartéis para a indisciplina, ferindo um dos pilares da vida militar.

Espera-se que o coronel Ricardo Sant’Anna seja punido por seus superiores por sua inaceitável militância bolsonarista, embora o Exército tenha mostrado em passado recente lamentável leniência com gestos de explícito desafio à hierarquia e à disciplina dos quartéis, ao não punir o general Eduardo Pazuello por ter participado de um comício do presidente Jair Bolsonaro. 

Enquanto as Forças Armadas são arrastadas pelo bolsonarismo para o centro do confronto político, os militares desobedientes transformam sua irreverência à hierarquia do Exército em ativo eleitoral. Pazuello, por exemplo, é candidato a deputado. O próprio Bolsonaro, que saiu do Exército pela porta dos fundos por ser mau militar, elegeu-se deputado e presidente. Não será surpresa se o coronel Sant’Anna aparecer em algum santinho nas próximas eleições. Cabe às Forças Armadas se dissociar desses desordeiros, deixando claro que não são nem milícia do bolsonarismo nem trampolim político para oportunistas.

É preciso vacinar as crianças

O Estado de S. Paulo

É imperioso que pais levem os filhos para imunizá-los, e que o Ministério da Saúde lidere a conscientização

Em boa hora, como faz desde 1980, o Ministério da Saúde acaba de lançar a Campanha Nacional de Vacinação contra a Poliomielite e Multivacinação. Até o próximo dia 9 de setembro, 18 imunizantes contra pólio, sarampo e outras doenças estarão disponíveis em cerca de 40 mil postos no País inteiro. Infelizmente, há famílias que deixam de vacinar os filhos por achar que tais doenças não existem mais ou por acreditar em notícias falsas que questionam a segurança e a eficácia dos imunizantes. Então, é imperioso que as famílias cumpram a sua parte e levem seus filhos para serem vacinados. 

Tão ou mais imperioso, porém, é que o Ministério da Saúde volte a cumprir suas tarefas e assuma seu papel de grande protagonista da vacinação. Que lidere pelo exemplo e intensifique as campanhas de esclarecimento e conscientização sobre a importância das vacinas, além de se antecipar a problemas de produção, importação e distribuição de imunizantes.

Nesse contexto, causa espanto a notícia publicada recentemente no Estadão de que outra importante vacina para bebês tem faltado nos estoques de alguns municípios, a ponto de ser racionada. A chamada BCG protege recém-nascidos contra formas graves de tuberculose e, como alertou a Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), o ideal é que se atinja pelo menos 90% de cobertura vacinal. Até o início do mês, no entanto, esse índice estava em modestos 55,81%.

É notório que o Ministério da Saúde perdeu o rumo no governo de Jair Bolsonaro, a começar pelo fato de que a pasta teve nada menos que quatro ministros em três anos. Quando o próprio presidente da República nega a eficácia de vacinas, insiste na compra de remédios comprovadamente ineficazes contra a covid-19, caso da cloroquina, e, ainda por cima, dissemina dúvidas sobre a segurança da vacinação das crianças contra o coronavírus, não surpreende que o Ministério da Saúde se comporte à imagem e semelhança do chefe.

Depois de sua atuação desastrosa durante a pandemia de covid-19, o Ministério da Saúde não parece ter se emendado, mostrando-se falho em áreas nas quais o Brasil já foi referência e tem sólida experiência, como é o caso da vacinação de crianças. A diminuição da cobertura vacinal nos últimos anos ameaça trazer de volta doenças já erradicadas há décadas. O caso mais notório é o da poliomielite, ou paralisia infantil, infecção registrada pela última vez em 1989. 

O sucesso no combate à pólio foi tamanho que o Zé Gotinha, personagem que simboliza a vacina contra essa doença, se tornou a marca de toda campanha de vacinação infantil. Agora, após sucessivas quedas no universo de crianças imunizadas, cresce o risco de que essa enfermidade de triste memória volte a assombrar o País.

Não é preciso ser especialista na área para saber aonde essa sequência de baixas taxas de vacinação levará o País. Mais do que nunca, cabe ao Ministério da Saúde estimular os pais a levar seus filhos para tomar a vacina, sem qualquer hesitação relacionada à segurança do imunizante e sem argumentos toscos sobre a “liberdade” de tomá-lo ou não

Congresso tem de barrar aumento no Judiciário

O Globo

Proposta de reajuste salarial de 18% para servidores já bem remunerados é indefensável

É vergonhosa a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de enviar ao Congresso Nacional uma proposta de reajuste salarial de 18% para ministros da Corte e servidores do Poder Judiciário. O argumento de que o último aumento para magistrados ocorreu em 2018 foge ao cerne da questão. Os ministros do STF já ganham muito — atualmente R$ 39 mil —, sem contar as regalias a que têm direito em razão do cargo. E o assunto não se encerra aí.

Seus salários servem de teto para todo o funcionalismo, com impacto direto na remuneração da elite formada por Judiciário e pelo Ministério Público. Cada real a mais para os ministros do Supremo exerce efeito cascata sobre a remuneração de toda a administração pública. O Congresso tem, portanto, o dever de barrar esse absurdo.

Para tornar o reajuste mais aceitável aos olhos da opinião pública, a proposta não prevê novos repasses ao Judiciário, mas o remanejamento de recursos. O corte no orçamento de algumas áreas permitirá cumprir as normas do teto de gastos. É louvável a intenção de respeitá-las, ainda mais quando a responsabilidade fiscal anda tão em baixa. Porém a eventual melhoria na gestão dos recursos não torna o aumento salarial do Judiciário moralmente mais tolerável. É preciso haver aumento salarial para fazer os cortes? A situação só confirma que a Justiça brasileira é cara e perdulária.

Entre 2017 e 2020, as despesas do Judiciário — incluindo as Justiças federal, as estaduais, militar, trabalhista e eleitoral — ultrapassaram a marca de R$ 100 bilhões em todos os anos. Mais de 90% desse montante é sugado justamente pelos recursos humanos. Uma análise comparativa feita na década passada mostrou que o Brasil tem o sistema judicial mais caro do mundo, ao custo de quase 2% do PIB, percentual absurdo diante de países como França (0,2%), Itália (0,3%) ou Portugal (0,4%).

As diferentes categorias de juízes estão entre os empregos públicos com maior salário. No ranking dos dez maiores do funcionalismo, nove estão no Judiciário e no Ministério Público, segundo estudo do Ipea. É falso que apenas juízes e procuradores ganhem bons salários. A remuneração nas duas esferas é mais alta já a partir da base — o quádruplo do que ganham funcionários do Legislativo e do Executivo, de acordo com a análise feita entre 1985 e 2018. A remuneração média do sistema judicial coloca os juízes e procuradores entre os 2% de maior renda no Brasil. Será preciso remunerá-los ainda melhor que isso?

São inquestionáveis a capacidade dos servidores do Judiciário e a importância do trabalho que prestam. É crucial para o país mantê-los no aparato estatal. Mas não há notícia de que as diferentes esferas do sistema judicial enfrentem dificuldade para atrair talentos nos concursos de admissão ou que legiões de funcionários do Judiciário ou do Ministério Público estejam trocando o serviço público pela iniciativa privada. Ao contrário, a disputa por vagas nos concursos continua acirrada. Pudera. Comparada às dificuldades no mundo real do mercado de trabalho, a generosidade do Estado brasileiro faz dos postos no Judiciário e no Ministério Público empregos dos sonhos.

Condenação dos três procuradores da Lava-Jato sofre contaminação política

O Globo

Decisão que obriga Janot, Deltan e Romão a ressarcir cofres públicos se choca com análise técnica do TCU

É inegável a contaminação política da decisão do Tribunal de Contas da União (TCU) que obriga os procuradores responsáveis pela força-tarefa da Operação Lava-Jato a ressarcir os cofres públicos em R$ 2,8 milhões, valor gasto com diárias e passagens. No clima de refluxo do combate à corrupção que tomou conta de Brasília no governo Jair Bolsonaro, a Lava-Jato foi a principal vítima. As Cortes superiores reviram sentenças e anularam condenações, o Congresso aprovou leis mais benevolentes com corruptos, e nomes outrora considerados heróis se tornaram párias. Passaram a arcar com o ônus dos erros da operação nem sempre de modo justo ou proporcional.

Entre eles estão os três procuradores condenados pelo TCU: o ex-procurador-geral Rodrigo Janot, o ex-coordenador da força-tarefa Deltan Dallagnol e o então procurador-chefe do Ministério Público Federal no Paraná, João Vicente Beraldo Romão. Além de devolver o (segundo o TCU) gasto indevido, os três terão de pagar multas individuais de R$ 200 mil. Se confirmada depois do recurso a que têm direito, a decisão poderá tornar Dallagnol inelegível (ele pretende disputar uma vaga de deputado federal pelo Paraná).

O tribunal confirmou por unanimidade (quatro a zero) o voto do presidente, ministro Bruno Dantas. Mesmo sem direito a votar, o ministro André de Carvalho resumiu com ironia o sentimento de quem se ressente do recuo no combate à corrupção: “Num momento em que o Brasil não condena todos aqueles que desviaram dinheiro público, [Dantas] busca condenar aqueles que trabalharam arduamente na defesa do patrimônio público”.

Carvalho tem razão em apontar a contradição, ecoando uma frustração sensata com o recuo da Lava-Jato. No mérito, o voto de Dantas entra em choque com uma análise da área técnica do próprio TCU. É certo que, por sete anos, procuradores da Lava-Jato deslocados para trabalhar em Curitiba foram remunerados como se estivessem “emprestados” à força-tarefa. Tal formato encareceu a operação com diárias e passagens sem efeito em seus resultados. Do ponto de vista da gestão de recursos, não faz nenhum sentido. Sobretudo porque, depois dos meses iniciais, já era possível vislumbrar que a força-tarefa seria mais duradoura.

De acordo com o parecer da área técnica que recomendou o arquivamento do caso, porém, Janot estipulou Curitiba como lotação provisória de alguns procuradores e limitou a oito as diárias de viagem que poderiam ser recebidas pelos demais. Apesar disso, alguns beneficiários, segundo o voto de Dantas, questionaram a legalidade do modelo.

Dantas ignorou o parecer e preferiu punir não os procuradores que ganharam mais, mas os gestores que considerou responsáveis por manter o modelo. Num caso abstrato, seria uma decisão defensável, pois não há dolo de quem apenas recebeu as diárias e passagens. No caso concreto da Lava-Jato, contudo, é difícil deixar de enxergar nela outro tipo de motivação. É uma pena que o zelo necessário pelos bons princípios na gestão pública acabe contaminado pelo inevitável ingrediente político.

Lei de Biden une política industrial, tributos, clima e desigualdade

Valor Econômico

Pacote define um modelo de política industrial moderna, acoplado a uma reforma tributária progressista e à distribuição social de seus frutos

Mais do que seus efeitos na política interna americana e na competitividade dos democratas nas eleições legislativas de novembro, os pacotes da Lei de Redução da Inflação aprovado pelo Senado e o de Chips e Ciência, sancionado pelo presidente Joe Biden, têm consequências importantes para a economia global. Os Estados Unidos fixaram linhas de política industrial, sinalizaram a redução da dependência externa de fornecimento de bens estratégicos e deram passo decisivo para combater as mudanças climáticas, ao destinar para isso o maior volume de recursos de sua história.

As iniciativas democratas, ainda que desidratadas, reverte parcialmente a queda de popularidade de Biden e os prognósticos mais pessimistas para os pleitos legislativos, de que Partido Democrata perderia inevitavelmente o controle da Câmara dos Deputados para os republicanos- o Senado vive um empate 50 a 50, frequentemente rompido pelo voto de minerva da vice-presidente Kamala Harris. A aprovação da lei de redução da inflação (IRA, em inglês) seguiu esse roteiro. Apesar de suas virtudes, os republicanos votaram como um só homem contra ele.

O IRA faz várias coisas ao mesmo tempo, coerentemente integradas. Ele dá estímulos poderosos para a transição energética rumo às tecnologias verdes, ao mesmo tempo que as financia com uma reforma de tributos que taxa mais as empresas com lucro superior a US$ 1 bilhão e fecha brechas tributárias que reduzem muito o imposto a pagar das multinacionais americanas. Mais: dá sobrevida ao Obamacare, destinando US$ 4 bilhões para evitar o aumento do prêmio dos seguros de quem aderiu à iniciativa (os mais necessitados), 13 milhões de pessoas, e torna mais acessíveis os remédios com receita no âmbito do Medicare.

O mix engenhoso trouxe ainda um ingrediente para retirar os argumentos tradicionais com os quais os republicanos recusam apoiar iniciativas democratas, a da piora das contas públicas: haverá com a lei redução do déficit de US$ 300 bilhões em dez anos com o aumento de arrecadação dele decorrente. Entre outras medidas, o IRS, a Receita americana, receberá aporte de US$ 80 bilhões, com o objetivo de aperfeiçoá-la para que possa realizar a missão de fechar as brechas tributárias para ricos e grandes empresas. O IRS estima que a diferença entre o que os contribuintes deveriam pagar de imposto de renda e o que pagam de fato chega a US$ 441 bilhões anuais.

Ao estabelecer alíquota mínima de 15% de imposto para as empresas o pacote se alinhou com as iniciativas internacionais de cercear a arbitragem tributária em favor de paraísos fiscais pelas multinacionais americanas. Além disso, instituiu cobrança de 1% sobre a recompra de ações pelas empresas, que também muitas vezes utilizada para não reduzir o valor de polpudas “stock options” que remuneram os próprios executivos que decidem recomprá-las.

Os recursos da revisão fiscal serão então destinados ao clima (US$ 396 bilhões) e aos mais necessitados na assistência médica. O pacote permitirá reduzir as emissões de CO2 em 40% em relação ao nível de 2005. Em 2026, dez remédios com prescrição terão teto de preços a serem pagos pelos consumidores e em 2029, 20, programa para o qual foram destinados US$ 288 bilhões. As grandes farmacêuticas terão de dar descontos se reajustarem preços acima da inflação, quando antes o governo era simplesmente proibido de barganhar o custo dos medicamentos.

O pacote dos chips e da ciência vai em outra direção, com o mesmo espírito - melhorar a competitividade americana e preparar a mão de obra para usufruir dos empregos mais atraentes que os saltos tecnológicos propiciarão. Serão US$ 52,7 bilhões para aumentar a produção de semicondutores, insumo estratégico a várias indústrias. A fatia da produção global detida pelos EUA já foi de 40%, hoje é de 10%. 80% da capacidade de fabricação mundial encontra-se hoje na Ásia.

Para formar a força de trabalho para novas tecnologias, incluindo as minorias, serão investidos US$ 13,2 bilhões e outros US$ 10 bilhões irão para a formação de hubs tecnológicos regionais. Cerca de US$ 100 bilhões se destinarão à pesquisa e desenvolvimento em cinco anos - os EUA investem hoje metade, 1%, do que investiam.

As ambições dos democratas eram muito maiores (o Build Back Better previa US$ 2 trilhões), mas o que foi aprovado é um primeiro modelo de política industrial moderna, acoplado a uma reforma tributária progressista e à distribuição social de seus frutos.

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