O Globo
Se nos EUA foi possível colocar fim à
violência e restabelecer a normalidade democrática, isso também será viável no
Brasil?
À medida que se multiplicam os ataques do
presidente brasileiro às instituições e à segurança do processo eleitoral,
ganham corpo comparações entre suas ações e as do ex-presidente dos EUA Donald
Trump. As analogias costumam demarcar semelhanças, como se o uso prévio da
cartilha pudesse antecipar resultados. Se no desfecho americano foi possível
colocar fim à violência e restabelecer a normalidade democrática, isso também
será possível no Brasil? É necessário, para dar a resposta, analisar ao menos
seis elementos que marcam diferenças importantes.
A relação com o Judiciário é um. Nos EUA, os tribunais deram um recado claro a Trump, negando 61 dos 62 processos para anular resultados eleitorais. Há um segundo: nunca o ex-presidente americano atacou e tentou intimidar os juízes da Suprema Corte, como vemos aqui. A despeito das declarações contrárias e da tentativa de desqualificar decisões, dirigidas tanto a juízes quanto ao Tribunal, nunca se ameaçou não cumprir uma ordem judicial. Aqui as ameaças se avolumam.
Na relação com as Forças Armadas, o
ex-presidente não foi capaz de manter a avaliação favorável e apoio dos
militares. No Brasil, falta clareza sobre essa posição. Se de um lado o pedido
de renúncia coletiva dos comandantes, em 2021, pode ser lido como resistência,
de outro há mais de 6 mil militares ocupando cargos na administração pública
federal. E parte do grupo continua reiteradamente a questionar a integridade do
processo eleitoral.
Um terceiro elemento é a maneira de
realizar eleições. Nos EUA, não existe legislação federal a regular as
eleições, nem há uma autoridade nacional controladora, papel do nosso Tribunal
Superior Eleitoral (TSE). Da maneira de votar à contagem dos votos, cada um dos
estados tem autonomia. Assim, Trump conseguiu levantar suspeitas em
estados-chave, mas foi impossível desacreditar todo o processo, com 50 eleições
“independentes”. Aqui, segue-se a lógica de descrédito ao sistema e ao TSE,
espinha dorsal do processo eleitoral.
A postura de pessoas-chave é outro fator.
Não somente o dever institucional, mas valores orientaram o comportamento de
alguns indivíduos. Exemplos são o vice Mike Pence e o motorista que não cedeu
lugar a Trump para ir ao Capitólio, no caso americano. Aqui, um dos episódios
de contenção coube ao presidente da Câmara, deputado Arthur Lira, que enterrou
a discussão sobre voto impresso, mas escolhe o silêncio diante dos ataques que
se seguem.
Um quinto ponto diz respeito ao
direcionamento da violência. Nos EUA, os ataques foram dirigidos às
instituições. A invasão ao Capitólio foi um ataque ao símbolo da democracia, o
Parlamento, e não um embate entre pessoas com posições diferentes. No Brasil, a
lógica tem sido a eliminação dos opositores. Estamos muito além dos ataques às
instituições, que seguem concentrados no Judiciário.
Por fim, as alegações de fraude eleitoral
pelo ex-presidente Trump, apesar da longevidade, foram sempre uma questão
doméstica. Aqui, ao convocar embaixadores para expor o país a um discurso
baseado em mentiras acerca do processo eleitoral, o presidente tornou o tema um
assunto de política externa, buscando apoio internacional para a não aceitação
dos resultados. Ao fazê-lo com a presença dos ministros da Controladoria-Geral
da União (CGU) e da Advocacia-Geral da União (AGU), demonstrou respaldo de duas
das principais estruturas do Estado.
Foi José Saramago quem disse, em seu
“Ensaio sobre a cegueira”, que a pior cegueira é a mental, por nos impedir de
reconhecer o que teremos pela frente. Que as semelhanças aparentes não nos
ceguem: parece igual, mas não é. Que a sociedade civil, lideranças políticas,
empresariais, partidos políticos, tribunais, academia — todos os democratas —
enxerguem claramente e se unam para enfrentar o que temos diante de nós.
*Mônica Sodré é cientista política e diretora executiva da Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (Raps)
Um comentário:
A colunista tem razão! Há algumas semelhanças, mas também grandes diferenças! Bolsonaro foi mau militar, inclusive punido e expulso, mas tem apoio de parte da cúpula militar. E Trump não foi considerado genocida, o que mostra que Bolsonaro é muito mais perigoso e violento que o seu ídolo e patrão!
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