quinta-feira, 11 de agosto de 2022

Míriam Leitão - A voz polifônica da democracia

O Globo

O país volta ao Largo de São Francisco para reafirmar o valor da democracia em momento de muitas e infames ameaças

O dia de hoje, 11 de agosto, já amanheceu histórico. Nas mesmas arcadas, no mesmo “território livre” do Largo de São Francisco, em São Paulo, será lida uma carta ao país em que os signatários defenderão a democracia. Em várias outras cidades, diversas pessoas lerão a mensagem. O que se quer afirmar, com o ato, pode ser resumido em alguns pontos. Que a luta democrática tem tradição noBrasil, pessoas que discordam em muita coisa estão juntas na defesa de valores e princípios comuns, há muitos problemas a enfrentar e nesta hora da festa cívica da eleição estamos passando por um momento de imenso perigo.

A inspiração é conhecida e será dita. Em 1977, o professor Goffredo da Silva Telles leu sua carta, no mesmo local, defendendo o fim da ditadura. Quem viveu aquele ano sabe o ar sufocante que pesava sobre nós. Em abril, o Congresso foi fechado pelo general Geisel. Em outubro, o Brasil estava diante de uma situação inusitada, porque até democratas se viam torcendo por Geisel, já que a luta intestina e cabulosa dentro do regime nos ameaçava com algo muito pior. Se o general Sylvio Frota vencesse a disputa, que travou com o então presidente, haveria uma radicalização da ditadura. Frota representava o que havia de pior dentro do regime. Em seu gabinete trabalhava um certo capitão Heleno, hoje ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional. Foi entre esses dois eventos — o fechamento do Congresso e a demissão do Ministro do Exército que conspirava para endurecer o regime — que o professor Goffredo leu sua carta defendendo o Estado Democrático de Direito.

Hoje, com a lembrança daquele momento histórico, o Brasil ouvirá a leitura da “Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito”. Nos últimos dias, quando o número de signatários se aproximava dos 900 mil, a sensação que se vivia era de que a sociedade reagia, afinal, aos muitos e infames ataques do presidente da República ao pacto político de 1988.

Ontem, reuni dois dos milhares de signatários no meu programa na Globonews, a atriz Malu Mader e o ex-ministro da Fazenda Pedro Malan, e perguntei por que eles haviam assinado.

— Não há como imaginar motivo que impedisse alguém de assinar. Não é contra nenhum grupo ideológico. É a favor da democracia, da liberdade, de nós brasileiros, de cada um de nós. A carta afirma o valor fundamental da vida, da liberdade, todos valores garantidos na Constituição. Ela só quer reafirmar uma conquista a duras penas, a democracia. E ela está sendo claramente ameaçada pelo presidente. A carta vai ser lida como resistência prévia a essa ameaça — disse Malu Mader.

— Há 45 anos houve também uma carta que insistia na necessidade de o país se redemocratizar. A carta não é partidária. A razão é que só na democracia há a aceitação e o elogio da diversidade, há a legitimidade para resolver conflitos. Só na democracia há o reconhecimento da importância da liberdade de expressão, de opinião, de imprensa, como direitos fundamentais da sociedade. O ponto fundamental é que um presidente eleito tem freios, filtros e contrapesos, e ele precisa se sentir presidente de todos os brasileiros e não apenas daqueles que o elegeram — disse Malan.

— Quando a população fala que está tudo errado, que tem que mudar tudo, a democracia serve para isso, é a única forma de dar voz ao nosso desejo de mudar — disse Malu.

Malan foi o primeiro presidente do Instituto dos Economistas, criado em 1978. Na época, o presidente da OAB era o lendário Raymundo Faoro. Malan ouviu do jurista algo do qual não se esqueceu. “Essa frente não durará para sempre, porque é multipartidária. Não é um partido político que está por trás. E as pessoas vão se dividir, mas no momento temos que estar juntos em um objetivo comum, compartilhado.” O ex-ministro destacou outro manifesto, o assinado por mais de 100 instituições empresariais. E lembrou o motivo de toda essa mobilização:

— As ameaças estão sendo reiteradas há muito tempo, contestando o nosso processo eleitoral, a lisura do processo. E uma tentativa de associação indébita das Forças Armadas, que são instituições de Estado e não de governo, com a tutela da contagem paralela, de fiscalização, processo que elas não deveriam estar envolvidas.

Hoje é 11 de agosto. A sociedade falará. Serão centenas de milhares de vozes. A beleza da democracia é que ela é polifônica.

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Míriam Leitão e sua lucidez dos fatos.