quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Hélio Schwartsman - Tolerância democrática

Folha de S. Paulo

Inovações positivas muitas vezes surgem indistinguíveis de uma subversão da ordem estabelecida

democracia pode tolerar protestos contra a democracia? A pergunta tem interesse acadêmico, mas, no mundo real, nem é preciso ter uma resposta a ela para mandar reprimir manifestações de bolsonaristas que ainda pipocam aí. Os manifestantes, afinal, vêm cometendo uma série de delitos, como constrangimento ilegal e desobediência, que independem de uma análise das motivações para justificar a ação policial.

A questão teórica, porém, é das mais interessantes. O reflexo automático do autoritarismo sempre foi classificar qualquer manifestação que envolva mudanças mais radicais como apologia de algum crime e proibi-la/reprimi-la. Era o mecanismo utilizado, por exemplo, contra as marchas da maconha. Mas, em 2011, o Supremo entendeu, acertadamente, que defender mudanças na legislação é comportamento coberto pela liberdade de expressão, não podendo ser criminalizado.

Não espero muita sofisticação intelectual dos baderneiros bolsonaristas, mas, seguindo essa mesma lógica, eles se livrariam de parte dos problemas jurídicos se parassem de pedir uma intervenção dos militares contra o resultado das eleições e passassem a defender uma mudança na Carta que desse aos generais o poder de atuar como árbitros finais em disputas políticas. Sim, é trocar seis por meia dúzia, mas bastaria para afastar o enquadramento de apologia, o que nos leva a uma aporia.

Existe um continuum entre pensamentos, palavras e ações. Proibir o pensamento é uma impossibilidade; proibir palavras é factível, mas geralmente indesejável. Inovações positivas muitas vezes surgem indistinguíveis de uma subversão da ordem estabelecida. Isso significa que medidas de defesa do Estado se tornam legítimas em algum ponto entre as palavras e as ações, não antes. Na prática, criticar ou mesmo desprezar a democracia é parte do jogo. Dar passos concretos para derrubá-la é que deve ser considerado crime — e dos mais graves.

2 comentários:

ADEMAR AMANCIO disse...

Concordo.

ADEMAR AMANCIO disse...

A democracia é um valor universal,ao menos devia ser.