segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

Denis Lerrer Rosenfield* – Um libertino

O Estado de S. Paulo.

Não é função estatal corrigir costumes seja em nome da moral, da religião ou do que considera como ‘saúde’

A Fábula das Abelhas ou Vícios Privados, Benefícios Públicos, de Bernard de Mandeville, obra clássica do início do século 18, vem a ser publicada no Brasil graças a uma primorosa edição da Topbooks com o patrocínio do Liberty Fund. Uma grande lacuna de pensamento será, assim, preenchida. Esse primeiro tomo, ao qual se seguirá um segundo no próximo ano, é constituído pela Fábula e por uma série de observações nas quais o autor desenvolve toda a sua filosofia moral e política. Diria que é um autor incontornável, sobretudo levando em consideração os valores morais reinantes na sociedade brasileira e as tentativas políticas e morais de reformá-los.

Isso porque Mandeville se inscreve na linha dos pensadores libertinos do século 17, que são propriamente livres-pensadores, sem nenhum apego a convenções ou a qualquer tipo de preconceito. Hoje, diríamos que são politicamente incorretos, críticos sagazes e sarcásticos do que as pessoas consideram, sob influências religiosas e éticas, como virtudes.

Virtudes, assim como os vícios, são simples nomes apostos a comportamentos, não possuindo nenhum valor intrínseco, salvo aqueles que os costumes vigentes consideram enquanto tais ou, em suas críticas, os reformadores sociais e políticos. Mandeville foi tido por um deísta, acreditando em uma noção abstrata de Deus, sem nenhuma crença em uma religião revelada. Hoje, diríamos um ateu.

A Fábula é a alegoria de uma colmeia que vive harmoniosamente, onde as abelhas satisfazem os seus desejos e interesses, sem nenhuma consideração prévia do bem coletivo. Este surge de suas ações, da proteção da propriedade, da sua riqueza, do desenvolvimento de uma economia de mercado, estando as leis a serviço dessas condições. O resultado é a prosperidade de todos. Como acontece em qualquer sociedade baseada na livre-iniciativa e no empreendedorismo, nascem desigualdades sociais e considerações que são politicamente utilizadas por reformadores (ou revolucionários), que tudo pretendem mudar a partir de suas próprias convicções dogmáticas. Tomam o poder e partem para uma reforma dos costumes, com proibições dos mais diferentes tipos, sendo o “vício” e o “pecado” os objetos de sua fúria destruidora. O resultado é a decadência dessa nova sociedade e do seu Estado, produzindo a miséria generalizada. Mensagem principal: toda política deve começar pela natureza tal como ela é, e não como alguns pretendam que ela deva ser.

A experiência comunista do século 20 bem mostrou o preço a ser pago pela imposição à força de reformas políticas. A União Soviética tentou reconstruir totalmente a sociedade, almejando criar um novo homem, visto que o antigo seria um mero produto da sociedade capitalista, fundada no egoísmo e na exploração do outro. Nasceria, graças à violência, um novo mundo. Partiram para a coletivização da terra, expropriando os kulaks, que eram nada mais do que agricultores familiares, pequenos e médios proprietários, reunindo-os em fazendas coletivas sob o jugo dos comunistas. O novo dever-ser humano/comunista faria a revolução total do ser humano/capitalista. Resultado: a fome generalizada, o Holodomor na Ucrânia, genocídio pela fome, com homens, mulheres e crianças vagando pelos campos e cidades, esquálidos, morrendo como zumbis sem rumo, e os casos extremos de canibalismo. Mensagem: a propriedade privada não pode ser desrespeitada e a natureza humana deve ser tomada tal como ela é.

Um caso particularmente paradigmático da época de Mandeville, na Inglaterra, era o alcoolismo, objeto dos reformadores que pretendiam aboli-lo. Era um “vício” a ser extirpado. Acontece que esse “vício” decorre naturalmente do prazer das pessoas, que têm pleno direito ao prazer que dele extraem, não tendo o Estado nada a ver com isso. Não é função estatal corrigir costumes seja em nome da moral, da religião ou do que considera como “saúde”. Ademais, esse vício alimenta toda uma cadeia produtiva, começando na agricultura, passando pela indústria e culminando no comércio, nutrindo os cofres púbicos com os impostos.

Hoje, o novo “vício” a ser combatido é o cigarro, o bode expiatório da vez. Em sua forma eletrônica, o vape, por exemplo, é proibido no Brasil, mas é de uso intensivo em festas, podendo ser comprado em qualquer lugar. A proibição, no caso, só tem o efeito colateral do contrabando, do mercado ilegal, sem que nenhum imposto seja arrecado. O mesmo já começa a ocorrer com carnes, comidas gordurosas ou salgadas e assim por diante. Amanhã será o “imposto do pecado” ou do “luxo”. Mensagem: o prazer das pessoas e a satisfação dos seus interesses não deveriam ser submetidos à prévia autorização ou punição estatal.

Mensagem final: as pessoas têm todo o direito ao “egoísmo”, a gostarem de si, sem que o Estado tenha o menor direito de imiscuir-se nesse domínio. Sejam libertinos, sejam politicamente incorretos. Eis a mensagem mandevilliana e minha deste novo ano que se inicia. Feliz 2023!

*Professor de Filosofia na Ufrgs

5 comentários:

Anônimo disse...

Passou por N. York um político que resolveu mudar o hábito do cidadão numa das coisas. que ele mais gosta, coca-cola. Muito açúcar é prejudicial à saúde ele disse, enfatizou que daquele dia em diante a coca-cola teria seu consumo reduzido, o copo médio passaria ser o Grande e que o Grande não seria vendido mais,
só sei que o tal político sumiu e a coca-cola continua sendo vendida em seu tamanho normal. Que tal?


Anônimo disse...

O político era o prefeito de N.Y..
Michael Bloomberg,, no ano de 2012. Ele conseguiu a lei proibindo a venda em restaurante.

Anônimo disse...

Rosenfield volta à sua filosofia e à sua tentativa de justificar seus preconceitos e suas ideologias. Para quem gosta disto ou acredita nele, nada demais. Mas tratar alcoolismo e tabagismo como meras vontades individuais, desconhecendo todos os gigantescos problemas sociais e de saúde PÚBLICA decorrentes destes comportamentos pessoais supostamente individuais, parece-me beirar a irresponsabilidade.

Anônimo disse...

Nossa, que "filósofo" que aciona todo seu sentimento de autoridade branca e masculinista pra dizer o que quer sem qualquer mediação social com a realidade histórico-concreta. Um típico olhar de demonização do Estado, como se fosse um ente separado da sociedade, um apelo ao valor liberal do egoísmo (cada um é a soma do todo, meu caro?) , e o alcoolismo como algo da esfera puramente individual...Ora, como dizia Chico Buarque "sem a cachaça, ninguém segura o rojão". É disso que precisamos filosofar, da materialidade da vida, como aprendido com Gramsci

ADEMAR AMANCIO disse...

O alcoolismo não tem nada a ver com prazer,é só sofrimento,talvez ele quisesse dizer boemia,aí sim.O alcóolatra começa beber quando o boêmio está chegando das noitadas.