O Estado de S. Paulo.
Não é função estatal corrigir costumes seja em nome da moral, da religião ou do que considera como ‘saúde’
A Fábula das Abelhas ou Vícios Privados,
Benefícios Públicos, de Bernard de Mandeville, obra clássica do início do
século 18, vem a ser publicada no Brasil graças a uma primorosa edição da
Topbooks com o patrocínio do Liberty Fund. Uma grande lacuna de pensamento
será, assim, preenchida. Esse primeiro tomo, ao qual se seguirá um segundo no
próximo ano, é constituído pela Fábula e por uma série de observações nas quais
o autor desenvolve toda a sua filosofia moral e política. Diria que é um autor
incontornável, sobretudo levando em consideração os valores morais reinantes na
sociedade brasileira e as tentativas políticas e morais de reformá-los.
Isso porque Mandeville se inscreve na linha dos pensadores libertinos do século 17, que são propriamente livres-pensadores, sem nenhum apego a convenções ou a qualquer tipo de preconceito. Hoje, diríamos que são politicamente incorretos, críticos sagazes e sarcásticos do que as pessoas consideram, sob influências religiosas e éticas, como virtudes.
Virtudes, assim como os vícios, são simples
nomes apostos a comportamentos, não possuindo nenhum valor intrínseco, salvo
aqueles que os costumes vigentes consideram enquanto tais ou, em suas críticas,
os reformadores sociais e políticos. Mandeville foi tido por um deísta,
acreditando em uma noção abstrata de Deus, sem nenhuma crença em uma religião
revelada. Hoje, diríamos um ateu.
A Fábula é a alegoria de uma colmeia que
vive harmoniosamente, onde as abelhas satisfazem os seus desejos e interesses,
sem nenhuma consideração prévia do bem coletivo. Este surge de suas ações, da
proteção da propriedade, da sua riqueza, do desenvolvimento de uma economia de
mercado, estando as leis a serviço dessas condições. O resultado é a
prosperidade de todos. Como acontece em qualquer sociedade baseada na
livre-iniciativa e no empreendedorismo, nascem desigualdades sociais e
considerações que são politicamente utilizadas por reformadores (ou
revolucionários), que tudo pretendem mudar a partir de suas próprias convicções
dogmáticas. Tomam o poder e partem para uma reforma dos costumes, com
proibições dos mais diferentes tipos, sendo o “vício” e o “pecado” os objetos
de sua fúria destruidora. O resultado é a decadência dessa nova sociedade e do
seu Estado, produzindo a miséria generalizada. Mensagem principal: toda
política deve começar pela natureza tal como ela é, e não como alguns pretendam
que ela deva ser.
A experiência comunista do século 20 bem
mostrou o preço a ser pago pela imposição à força de reformas políticas. A União
Soviética tentou reconstruir totalmente a sociedade, almejando criar um novo
homem, visto que o antigo seria um mero produto da sociedade capitalista,
fundada no egoísmo e na exploração do outro. Nasceria, graças à violência, um
novo mundo. Partiram para a coletivização da terra, expropriando os kulaks, que
eram nada mais do que agricultores familiares, pequenos e médios proprietários,
reunindo-os em fazendas coletivas sob o jugo dos comunistas. O novo dever-ser
humano/comunista faria a revolução total do ser humano/capitalista. Resultado:
a fome generalizada, o Holodomor na Ucrânia, genocídio pela fome, com homens,
mulheres e crianças vagando pelos campos e cidades, esquálidos, morrendo como
zumbis sem rumo, e os casos extremos de canibalismo. Mensagem: a propriedade
privada não pode ser desrespeitada e a natureza humana deve ser tomada tal como
ela é.
Um caso particularmente paradigmático da
época de Mandeville, na Inglaterra, era o alcoolismo, objeto dos reformadores
que pretendiam aboli-lo. Era um “vício” a ser extirpado. Acontece que esse
“vício” decorre naturalmente do prazer das pessoas, que têm pleno direito ao
prazer que dele extraem, não tendo o Estado nada a ver com isso. Não é função
estatal corrigir costumes seja em nome da moral, da religião ou do que
considera como “saúde”. Ademais, esse vício alimenta toda uma cadeia produtiva,
começando na agricultura, passando pela indústria e culminando no comércio,
nutrindo os cofres púbicos com os impostos.
Hoje, o novo “vício” a ser combatido é o
cigarro, o bode expiatório da vez. Em sua forma eletrônica, o vape, por
exemplo, é proibido no Brasil, mas é de uso intensivo em festas, podendo ser
comprado em qualquer lugar. A proibição, no caso, só tem o efeito colateral do
contrabando, do mercado ilegal, sem que nenhum imposto seja arrecado. O mesmo
já começa a ocorrer com carnes, comidas gordurosas ou salgadas e assim por
diante. Amanhã será o “imposto do pecado” ou do “luxo”. Mensagem: o prazer das
pessoas e a satisfação dos seus interesses não deveriam ser submetidos à prévia
autorização ou punição estatal.
Mensagem final: as pessoas têm todo o
direito ao “egoísmo”, a gostarem de si, sem que o Estado tenha o menor direito
de imiscuir-se nesse domínio. Sejam libertinos, sejam politicamente incorretos.
Eis a mensagem mandevilliana e minha deste novo ano que se inicia. Feliz 2023!
*Professor de Filosofia na Ufrgs
5 comentários:
Passou por N. York um político que resolveu mudar o hábito do cidadão numa das coisas. que ele mais gosta, coca-cola. Muito açúcar é prejudicial à saúde ele disse, enfatizou que daquele dia em diante a coca-cola teria seu consumo reduzido, o copo médio passaria ser o Grande e que o Grande não seria vendido mais,
só sei que o tal político sumiu e a coca-cola continua sendo vendida em seu tamanho normal. Que tal?
O político era o prefeito de N.Y..
Michael Bloomberg,, no ano de 2012. Ele conseguiu a lei proibindo a venda em restaurante.
Rosenfield volta à sua filosofia e à sua tentativa de justificar seus preconceitos e suas ideologias. Para quem gosta disto ou acredita nele, nada demais. Mas tratar alcoolismo e tabagismo como meras vontades individuais, desconhecendo todos os gigantescos problemas sociais e de saúde PÚBLICA decorrentes destes comportamentos pessoais supostamente individuais, parece-me beirar a irresponsabilidade.
Nossa, que "filósofo" que aciona todo seu sentimento de autoridade branca e masculinista pra dizer o que quer sem qualquer mediação social com a realidade histórico-concreta. Um típico olhar de demonização do Estado, como se fosse um ente separado da sociedade, um apelo ao valor liberal do egoísmo (cada um é a soma do todo, meu caro?) , e o alcoolismo como algo da esfera puramente individual...Ora, como dizia Chico Buarque "sem a cachaça, ninguém segura o rojão". É disso que precisamos filosofar, da materialidade da vida, como aprendido com Gramsci
O alcoolismo não tem nada a ver com prazer,é só sofrimento,talvez ele quisesse dizer boemia,aí sim.O alcóolatra começa beber quando o boêmio está chegando das noitadas.
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