O Globo
Uma das constatações mais duras no avanço
das mudanças climáticas é que os pobres são realmente os mais atingidos
Quando nasci, em fevereiro, choveu muito.
As pessoas tinham de se mover em canoas, contavam meus pais. Eu me acostumei
com a ideia dos temporais de verão; às vezes, brincava na enxurrada sob
protestos maternos.
As chuvas costumam ir além de fevereiro,
como mostra a canção de Tom Jobim “Águas de março”, uma das mais belas de nossa
música popular.
Como adulto, as chuvas tornaram-se parte do
meu trabalho de jornalista ou mesmo de deputado. Sempre estive próximo. Da
catástrofe na Serra Fluminense às cheias de Trizidela do Vale, no interior do
Maranhão.
Um pouco descrente de governos, pensei em fortalecer as próprias comunidades. A ideia era preparar um manual para as grandes chuvas, como os caribenhos e americanos fazem com os ciclones. Coisas simples, como ter a lista de todos com dificuldade de locomoção, para ser retirados com prioridade.
Nas enchentes em Santo Antônio de Pádua,
aprendi um pouco mais: o hospital foi inundado. Era preciso buscar em casa os
dependentes de hemodiálise, transportá-los de helicóptero. Mais um item no
caderno, que já tinha indicação dos abrigos, lugares onde se guardam barcos e
botes, rotas de fuga.
Cheguei a formular um projeto que ensinasse
defesa civil nas escolas, pois contava com as crianças para alertar os pais.
Vejo hoje que Marina Silva tem
um plano mais ambicioso: mobilizar todo o Ministério da Educação para tratar
das mudanças
climáticas.
Não fazemos tantas simulações, como os
japoneses. Mas conseguimos realizá-las no caso de Angra dos Reis, por causa das
usinas nucleares. De qualquer forma, o quadro hoje é mais claro: 4,5 milhões de
pessoas em áreas de alto risco, distribuídas por mais de 14 mil pontos
críticos.
Isso demanda um projeto especial porque
dificilmente terão casa segura antes das próximas chuvas. Um projeto que
aumente a resiliência das cidades brasileiras, adaptando o país às mudanças
climáticas, tem chance de financiamento por meio do Acordo de Paris.
Há muito trabalho pela frente. É uma ilusão
supor que o obstáculo é apenas o negacionismo de Bolsonaro. Muitos políticos
aceitam as mudanças climáticas, mas, na prática cotidiana, as negam.
O Litoral Norte de São Paulo sofreu
o impacto de uma chuva recorde. Mas a prefeitura de São Sebastião já fora
intimada 37 vezes por não realizar obras nas encostas. Um projeto da ONG Escola
Verde tinha apoio do BID para construir casas populares na Barra do Sahy,
centro do grande drama. Conseguiram até terreno, mas o projeto dormiu sete anos
na gaveta do governo estadual.
Existe um negacionismo simpático, do “tudo
bem, deixa conosco”, mas que vai empurrando soluções com a barriga até que a
tragédia aconteça.
Na verdade, se olharmos de uma perspectiva
histórica, a tragédia no litoral brasileiro acontece em câmera lenta. No norte
de São Paulo, os caiçaras foram expulsos de suas aldeias de pescadores pela
especulação imobiliária. Os ricos se instalaram nas praias, e os pobres foram
morar na encosta da Serra do Mar, onde vivem de prestar serviços e da
construção. A especulação imobiliária controla prefeitos e vereadores.
Dois repórteres do Estado de S. Paulo,
Renata Cafardo e Tiago Queiroz, foram agredidos num condomínio de luxo, em
Maresias, apenas porque estavam cobrindo o impacto do temporal:
— Comunistas — gritavam os moradores.
Uma das constatações mais duras no avanço
das mudanças climáticas é que os pobres são realmente os mais atingidos, não em
todos os casos, mas na maioria das vezes. Isso cria em muita gente a sensação
de que o problema existe, mas está muito longe, lá onde não sujamos nossos
sapatos de lama.
O momento é de sentar e discutir uma saída
para este mundo em transformação, que nos abala tanto. O negacionismo é
suicida, não é possível que um país sucumba à própria ignorância.
Um comentário:
Correto.
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