O Globo
Em destaque, logo na primeira gôndola da
livraria nova-iorquina Strand brilham exemplares de “Victory City”, de Salman
Rushdie. É o décimo sexto livro do autor indiano depois que sua morte foi
ordenada por Khomeini. A fatwa veio em represália ao “Versos satânicos”, onde o
aiatolá enxergou blasfêmias a Maomé. Em troca de seu assassinato, o líder
iraniano oferecia alguns milhares de dólares. Literalmente, um escritor com
cabeça a prêmio, refém da intolerância religiosa.
A fatwa foi emitida há mais de 30 anos. Em agosto passado, o ódio longo de Khomeini, morto há décadas, alcançou Rushdie quando se preparava para falar sobre cultura contemporânea numa cidadezinha próxima a Nova York. Um fanático subiu ao palco e o atacou, desferindo quase duas dezenas de facadas. Na recente New Yorker, uma foto de página inteira em branco e preto expõe as cicatrizes deixadas pelo atentado no rosto de Rushdie, assim como a perda do olho direito e do movimento do braço esquerdo. “Victory City”, delicada fábula, conta a história de uma garota e de uma cidade onde as mulheres buscam resistir ao patriarcalismo e à intolerância religiosa.
A fatwa de Khomeini — e o
atentado a Rushdie, um dos grandes escritores contemporâneos — pode ser vista
como o escárnio da irracionalidade e da tentativa de aprisionar a sociedade a um
passado medieval. Não deixa de ser fundamentalismo religioso, como é ainda uma
visão totalitária sobre a liberdade alheia. Lugar nublado onde se misturam
ideologia, fanatismo e ignorância, a ânsia de exercer poder sobre o outro é um
exercício constante na sociedade, sob diversos disfarces.
A poeira do carnaval de 2023 já baixou, mas
difícil não gargalhar com o tuíte do governador da Bahia, o agora afamado
Jerônimo Rodrigues. Ancorado na credencial de professor, listou uma série de
fantasias proibidas aos baianos. Até então, tal tipo de atitude — criminalizar
o imaginário alheio — era comportamento de radicais das redes sociais ou de
grupos encobertos em palavras de ordem identitárias. Quase sempre com desprezo
à tradição cultural.
O mandatário baiano listou como proibidas
as fantasias de indígenas (“é um desrespeito se apropriar de suas
vestimentas”), pessoas pretas (“perucas e demais acessórios reforçam o
racismo”) e travesti (“se vestir de mulher ridiculariza figuras femininas”).
Também acrescentou:
—Vestir-se de “nega maluca”? Nem pensar.
Mas não se furtou a aparecer com um chapéu
de Jeca. Pena que os jecas não dão bandeira, daí não protestam.
Perguntei a amigos de Salvador e soube que
suas ordens foram sumariamente desrespeitadas. O circuito Castro Alves-Barra
surgia coalhado de foliões em evidente desobediência civil. O próximo passo
talvez seja interferir nas vestimentas das vaquejadas, do bumba meu boi e da
cavalhada. Além do desejo de renomear o burro, o charmoso animal.
O tuíte do mandatário baiano não é
civilizatório, como quer vender a uns poucos. É, sim, incitação a uma cisão.
Que, levada a cabo por seguidores mais fundamentalistas, resultará em violência
— como já ocorre por aí. Afora o arrazoado do Jerônimo ser um amontoado de
receitas e maledicências sem dendê.
Isso vale para todo o espectro ideológico.
Quantos não deixaram de tomar vacina por
causa daquele ex-líder da extrema direita? Quantos não começaram a duvidar das
urnas? De tais sandices vieram depois mortes, brigas e tiozinhos com pneumonia
na porta dos quartéis. Significa que o gado escuta as autoridades sem filtro —
e nem todas as suas falas resultam em felicidade e paz na Terra.
Clivagens ecoam a partir dos tuítes e dos
posts, à esquerda e à direita. O filme “Babilônia”, maravilhoso, escande a
grande incoerência das lutas identitárias. Um trompetista preto é obrigado a
pintar seu rosto de mais escuro porque seus colegas de banda são mais pretos
que ele, o que o faz parecer branco por comparação. E o público rejeitaria ver
um grupo misturado de brancos e pretos. Daí que a extrema direita do movimento
negro americano tenha colocado em palavra de ordem a ideia de que miscigenação
é racismo. De vez em quando isso ecoa pelo Brasil, como se fosse bandeira da
esquerda identitária.
É o caso inverso do que ocorria realmente
no século passado, quando os jogadores pretos se viam obrigados a passar pó de
arroz para poder integrar os times de futebol, formados basicamente por
brancos. Até que as seguidas derrotas para Argentina e Uruguai mudaram a História
brasileira.
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