quarta-feira, 15 de março de 2023

Wilson Gomes* - Cortem-lhe a cabeça!

Folha de S. Paulo

Política é inovação que substituiu força bruta para mediar divergências

Indagado pela filha, Adelaide, por que se deitava tão tarde depois de passar as noites fora de casa, Vasconcelos, personagem de um delicioso conto de Machado de Assis, "O Segredo de Augusta", respondeu espirituoso: "Deito-me tarde porque assim o pedem as necessidades políticas".

E emendou com um argumento que haveria de levar a filha a desistir de vez de pergunta tão embaraçosa para um mundano: "Tu não sabes o que é política; é uma cousa muito feia, mas muito necessária". Adelaide não recuou diante de tão pouco: "Sei o que é política, sim". Restou ao pai o desafio que deveria fechar a querela: "Ah! Explica-me lá então o que é". Não se fez de rogada a menina: "Lá na roça, quando quebraram a cabeça ao juiz de paz, disseram que era por política; o que eu achei esquisito, porque a política seria não quebrar a cabeça...".

Vivo preso no dilema de Adelaide há anos. Do ponto de vista da história da humanidade, a política é uma extraordinária inovação nas interações humanas, que substituiu a força bruta como forma de mediar a colisão de interesses e a divergência das vontades. Política, de fato, seria não quebrar a cabeça do adversário; por que então tantas cabeças são rebentadas por tal razão?

Está bem, não somos mais majoritariamente os brutos de umas décadas atrás, para os quais qualquer expediente valia –do assassinato à coação, dos espancamentos à corrupção– para ganhar mandatos e cargos e, por meio deles, acesso aos deliciosos recursos disponíveis no Estado. Agora somos brutos civilizados, com o perdão do oxímoro, com métodos mais sofisticados de fazer calar.

A Rainha de Copas do País das Maravilhas, de Lewis Carroll, impressionou Alice porque "tinha apenas uma maneira de resolver todas as dificuldades, grandiosa ou pequena. ‘Fora com a cabeça dele!’ dizia ela, sem sequer olhar em volta". Noves fora o desconforto de Alice, o fato é que este, contudo, continua um comando efetivo, à menor contrariedade, embora o sangue não precise sempre escorrer.

As pessoas parecem não reconhecer mais que, em uma sociedade pluralista, os desacordos morais não são apenas esperados e suportados, mas reconhecidos como parte constitutiva justamente das vantagens do pluralismo.

E não se trata apenas do reconhecimento da divergência, mas de alguns impasses consideráveis, quase permanentes, sobre temas altamente sensíveis. Desacordos morais permanentes podem acontecer não por maldade, ignorância ou estupidez, mas porque os lados que discordam em relação a um tema têm um número de razões que consideram suficiente para continuar sustentando a própria posição.

Evangélicos conservadores e universitários liberais, p. ex., encontram-se em divergência permanente sobre um número considerável de temas; mas, ou se reconhece que apenas um desses grupos tem direito de existir e sustentar uma opinião, o que me parece o princípio da rainha de Alice, ou ambos têm que reconhecer a existência do outro e se obrigar a considerar o que ele está dizendo.

Só que pior que a dificuldade de entender o desacordo como inevitável é o uso que se faz das divergências para provocar ainda mais escaramuças.

Quando Nikolas Ferreira sobe ao plenário da Câmara para mais uma das suas performances voltadas para provocar a esquerda por meio da humilhação de alguma minoria, temos um ator que deliberadamente precisa obter o ódio e os insultos dos progressistas para se cacifar com os conservadores e ultraconservadores que representa.

Mas isso só é possível porque ele sabe identificar as zonas de desacordo e de desconforto moral (no caso, o juízo público sobre se mulheres trans fazem jus a todos os direitos das mulheres) e porque sabe que a esquerda não suporta a menor contrariedade, e que vai responder à provocação com insultos e pedidos de cassação. Objetivo alcançado com sucesso.

É ingênuo imaginar ser possível levar todos os segmentos de uma sociedade pluralista e polarizada a se comprometer com o esforço deliberativo de ouvir todos os lados e a conversar entre si. Ainda mais com tanto nervo exposto e tanta gente interessada não no esclarecimento recíproco e numa troca tolerante de argumentos, mas em mexer nas feridas a ponto de obscurecer os debates de temas capitais e de torná-los impossíveis.

Enquanto não se avançar nessa agenda, os truques de sujeitos como esse funcionarão sempre, uma vez que estamos furiosos e o grito "cortem-lhe a cabeça!" imediatamente nos convoca às armas.

*Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"

 

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