Folha de S. Paulo
Política é inovação que substituiu força
bruta para mediar divergências
Indagado pela filha, Adelaide, por que se
deitava tão tarde depois de passar as noites fora de casa, Vasconcelos,
personagem de um delicioso conto de Machado de Assis, "O Segredo de Augusta", respondeu espirituoso:
"Deito-me tarde porque assim o pedem as necessidades políticas".
E emendou com um argumento que haveria de
levar a filha a desistir de vez de pergunta tão embaraçosa para um mundano:
"Tu não sabes o que é política; é uma cousa muito feia, mas muito
necessária". Adelaide não recuou diante de tão pouco: "Sei o que é
política, sim". Restou ao pai o desafio que deveria fechar a querela:
"Ah! Explica-me lá então o que é". Não se fez de rogada a menina:
"Lá na roça, quando quebraram a cabeça ao juiz de paz, disseram que era
por política; o que eu achei esquisito, porque a política seria não quebrar a
cabeça...".
Vivo preso no dilema de Adelaide há anos. Do ponto de vista da história da humanidade, a política é uma extraordinária inovação nas interações humanas, que substituiu a força bruta como forma de mediar a colisão de interesses e a divergência das vontades. Política, de fato, seria não quebrar a cabeça do adversário; por que então tantas cabeças são rebentadas por tal razão?
Está bem, não somos mais majoritariamente
os brutos de umas décadas atrás, para os quais qualquer expediente valia –do
assassinato à coação, dos espancamentos à corrupção– para
ganhar mandatos e cargos e, por meio deles, acesso aos deliciosos recursos
disponíveis no Estado. Agora somos brutos civilizados, com o perdão do oxímoro,
com métodos mais sofisticados de fazer calar.
A Rainha de Copas do País das Maravilhas,
de Lewis Carroll, impressionou Alice porque "tinha apenas uma maneira de
resolver todas as dificuldades, grandiosa ou pequena. ‘Fora com a cabeça dele!’
dizia ela, sem sequer olhar em volta". Noves fora o desconforto de Alice,
o fato é que este, contudo, continua um comando efetivo, à menor contrariedade,
embora o sangue não precise sempre escorrer.
As pessoas parecem não reconhecer mais que,
em uma sociedade pluralista, os desacordos morais não são apenas esperados e
suportados, mas reconhecidos como parte constitutiva justamente das vantagens
do pluralismo.
E não se trata apenas do reconhecimento da
divergência, mas de alguns impasses consideráveis, quase permanentes, sobre
temas altamente sensíveis. Desacordos morais permanentes podem acontecer não
por maldade, ignorância ou estupidez, mas porque os lados que discordam em
relação a um tema têm um número de razões que consideram suficiente para
continuar sustentando a própria posição.
Evangélicos conservadores e universitários
liberais, p. ex., encontram-se em divergência permanente sobre um número
considerável de temas; mas, ou se reconhece que apenas um desses grupos tem
direito de existir e sustentar uma opinião, o que me parece o princípio da
rainha de Alice, ou ambos têm que reconhecer a existência do outro e se obrigar
a considerar o que ele está dizendo.
Só que pior que a dificuldade de entender o
desacordo como inevitável é o uso que se faz das divergências para provocar
ainda mais escaramuças.
Quando Nikolas
Ferreira sobe ao plenário da Câmara para mais uma das suas
performances voltadas para provocar a esquerda por meio da humilhação de alguma
minoria, temos um ator que deliberadamente precisa obter o ódio e os insultos
dos progressistas para se cacifar com os conservadores e ultraconservadores que
representa.
Mas isso só é possível porque ele sabe
identificar as zonas de desacordo e de desconforto moral (no caso, o juízo
público sobre se mulheres trans fazem jus a todos os direitos das mulheres) e
porque sabe que a esquerda não suporta a menor contrariedade, e que vai
responder à provocação com insultos e pedidos de cassação. Objetivo alcançado
com sucesso.
É ingênuo imaginar ser possível levar todos
os segmentos de uma sociedade pluralista e polarizada a se comprometer com o
esforço deliberativo de ouvir todos os lados e a conversar entre si. Ainda mais
com tanto nervo exposto e tanta gente interessada não no esclarecimento
recíproco e numa troca tolerante de argumentos, mas em mexer nas feridas a
ponto de obscurecer os debates de temas capitais e de torná-los impossíveis.
Enquanto não se avançar nessa agenda, os
truques de sujeitos como esse funcionarão sempre, uma vez que estamos furiosos
e o grito "cortem-lhe a cabeça!" imediatamente nos convoca às armas.
*Professor titular da UFBA (Universidade
Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"
Um comentário:
Perfeito.
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