quarta-feira, 15 de março de 2023

Roberto DaMatta -A exigência do cargo

O Globo

Nos casos sul-americano e brasileiro, o papel de ‘primeiro mandatário do país’ tem como modelo um óbvio viés de realeza

Consolo minhas desilusões acadêmicas lendo o velho e perturbador filósofo Arthur Schopenhauer. Num livro de 1818, encontro uma citação intrigante de um igualmente sábio escritor romano, Públio Siro, tomado de sua obra “Sentenças”. Nela, lemos o seguinte paradoxo:

— O juiz é condenado quando o culpado é absolvido.

Imediatamente, o Brasil baixa inteiro no meu coração. O que seria do nosso sistema legal — e, acima de tudo, legalista, protelador e desenhado para prescrever crimes de “gente grande” — se esse romano escrevesse nos nossos jornais, examinando os vexaminosos casos brasileiros?

Episódios amarrados no que, para muitos, o político teria canibalizado o jurídico, tornando-o “legal”, e, para outros, teria ocorrido o justo oposto.

Com a devida vênia, quantos juízes deveriam ser condenados pela letra desse pensador romano? Os últimos acontecimentos me contam que eles têm a ver com uma absoluta incompreensão do vínculo entre cargos públicos singulares, exclusivos e “civicamente consagrados”, sem cuja permanência o governo não funcionaria, e os indivíduos interesseiros e transitórios que os ocupam.

No Brasil, eles se apropriam desses cargos ungidos pela aura salvacionista-populista, com uma total sem-cerimônia e com um abusivo mandonismo, como se tais cargos não tivessem encargos e demandas. O resultado é que o ocupante torna-se dono do papel, em vez de ser por ele englobado.

É claro que todo ocupante imprime sua pessoa no cargo, mesmo quando esse cargo (como o de rei, Papa ou presidente) é uma “corporação solitária”, como ensina Henry Maine. Mas — e esse é o ponto — ele não tem o direito de sequestrá-lo, sobretudo se o papel é, reitero, um cargo público com — sejamos weberianos — espírito e ética. O espírito demanda altruísmo e ética, para além das inadiáveis responsabilidades capazes de saciar interesses pessoais e partidários.

A história de nosso republicanismo está repleta de sequestros. Já vimos o cargo ser abandonado, numa rejeição inexplicável até mesmo para um Freud. Contudo a mais criminosa anomalia é o “golpe” que impinge a papéis públicos disputados em competição eleitoral livre e aberta um ator estranho com a teoria embusteira segundo a qual é preciso alguém “de fora” da política para “moralizar” a política! Uma falácia sociológica flagrante, fundada num salvacionismo populista que vai ficando cada vez mais intolerável.

O que nos escapa é, reitero, o laço entre o ator e o papel, algo que Jair Bolsonaro, no cargo de presidente, tornou ofensivo, inaceitável e caótico. O que chamamos de “autoritarismo” — esse fascismo cordial que disfarça a má-fé prometendo cuidar do povo — tem como cicatriz uma desavergonhada apropriação do papel pelo ator. Nos casos sul-americano e brasileiro, o papel de “primeiro mandatário do país” tem como modelo um óbvio viés de realeza, e os privilégios que o definem legalmente neutralizam os abusos cometidos por quem o ocupa.

Essa terrível visão de ver o mesmo filme — mocinhos viram bandidos, eleitos prometendo paz engatilham suas revanches — tem como centro a ausência de discussão entre o poder e as exigências do papel sobre seus atores.

Trata-se de algo abstrato? Depende da avaliação que os agentes do Estado no governo de fulano ou sicrano fazem dos costumes sociais. Se eles acham que se pode negar o pedido de um amigo, então não há nenhum problema em julgar um irmão, a mulher amada ou um cunhado.

Ou, como estamos testemunhando, apropriar-se pessoalmente de presentes dados ao presidente e, supomos, não a quem ocupa a Presidência. Do mesmo modo que não há o que refletir quando Lula-presidente indica seu advogado para o STF.

Nos dois casos, a polarização some diante dos costumes, e surge a revelação de que a diferença está no papel, e não nos programas partidários e na ideologia — essas cortinas de fumaça que recebem um peso maior do que os hábitos do coração.

 

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