O Globo
Nos casos sul-americano e brasileiro, o
papel de ‘primeiro mandatário do país’ tem como modelo um óbvio viés de realeza
Consolo minhas desilusões acadêmicas lendo
o velho e perturbador filósofo Arthur Schopenhauer. Num livro de 1818, encontro
uma citação intrigante de um igualmente sábio escritor romano, Públio Siro,
tomado de sua obra “Sentenças”. Nela, lemos o seguinte paradoxo:
— O juiz é condenado quando o culpado é
absolvido.
Imediatamente, o Brasil baixa inteiro no
meu coração. O que seria do nosso sistema legal — e, acima de tudo, legalista,
protelador e desenhado para prescrever crimes de “gente grande” — se esse
romano escrevesse nos nossos jornais, examinando os vexaminosos casos
brasileiros?
Episódios amarrados no que, para muitos, o político teria canibalizado o jurídico, tornando-o “legal”, e, para outros, teria ocorrido o justo oposto.
Com a devida vênia, quantos juízes deveriam
ser condenados pela letra desse pensador romano? Os últimos acontecimentos me contam
que eles têm a ver com uma absoluta incompreensão do vínculo entre cargos
públicos singulares, exclusivos e “civicamente consagrados”, sem cuja
permanência o governo não funcionaria, e os indivíduos interesseiros e
transitórios que os ocupam.
No Brasil, eles se apropriam desses cargos
ungidos pela aura salvacionista-populista, com uma total sem-cerimônia e com um
abusivo mandonismo, como se tais cargos não tivessem encargos e demandas. O
resultado é que o ocupante torna-se dono do papel, em vez de ser por ele
englobado.
É claro que todo ocupante imprime sua
pessoa no cargo, mesmo quando esse cargo (como o de rei, Papa ou presidente) é
uma “corporação solitária”, como ensina Henry Maine. Mas — e esse é o ponto —
ele não tem o direito de sequestrá-lo, sobretudo se o papel é, reitero, um
cargo público com — sejamos weberianos — espírito e ética. O espírito demanda
altruísmo e ética, para além das inadiáveis responsabilidades capazes de saciar
interesses pessoais e partidários.
A história de nosso republicanismo está
repleta de sequestros. Já vimos o cargo ser abandonado, numa rejeição
inexplicável até mesmo para um Freud. Contudo a mais criminosa anomalia é o
“golpe” que impinge a papéis públicos disputados em competição eleitoral livre
e aberta um ator estranho com a teoria embusteira segundo a qual é preciso
alguém “de fora” da política para “moralizar” a política! Uma falácia
sociológica flagrante, fundada num salvacionismo populista que vai ficando cada
vez mais intolerável.
O que nos escapa é, reitero, o laço entre o
ator e o papel, algo que Jair
Bolsonaro, no cargo de presidente, tornou ofensivo, inaceitável e
caótico. O que chamamos de “autoritarismo” — esse fascismo cordial que disfarça
a má-fé prometendo cuidar do povo — tem como cicatriz uma desavergonhada
apropriação do papel pelo ator. Nos casos sul-americano e brasileiro, o papel
de “primeiro mandatário do país” tem como modelo um óbvio viés de realeza, e os
privilégios que o definem legalmente neutralizam os abusos cometidos por quem o
ocupa.
Essa terrível visão de ver o mesmo filme —
mocinhos viram bandidos, eleitos prometendo paz engatilham suas revanches — tem
como centro a ausência de discussão entre o poder e as exigências do papel
sobre seus atores.
Trata-se de algo abstrato? Depende da
avaliação que os agentes do Estado no governo de fulano ou sicrano fazem dos
costumes sociais. Se eles acham que se pode negar o pedido de um amigo, então
não há nenhum problema em julgar um irmão, a mulher amada ou um cunhado.
Ou, como estamos testemunhando,
apropriar-se pessoalmente de presentes dados ao presidente e, supomos, não a
quem ocupa a Presidência. Do mesmo modo que não há o que refletir quando Lula-presidente
indica seu advogado para o STF.
Nos dois casos, a polarização some diante
dos costumes, e surge a revelação de que a diferença está no papel, e não nos
programas partidários e na ideologia — essas cortinas de fumaça que recebem um
peso maior do que os hábitos do coração.
Nenhum comentário:
Postar um comentário