Valor Econômico
Para bancar aumento de gastos, receita terá
de subir com força
As linhas gerais da nova regra fiscal foram
enfim reveladas. Anunciada na quinta-feira pelo ministro da Fazenda, Fernando
Haddad, a proposta do novo arcabouço escancara a preferência por um ajuste das
contas públicas concentrado em aumentos expressivos da receita, para acomodar
gastos que deverão crescer sempre acima da inflação. Para que as metas de
resultado primário previstas no projeto sejam alcançadas, será preciso elevar a
carga tributária para bancar despesas que terão expansão anual de 0,6% a 2,5%,
além da variação dos índices de preços.
Ex-diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI), Gabriel Leal de Barros diz que só será possível cumprir as metas embutidas no novo arcabouço com um “desempenho extraordinário” da arrecadação. “Será necessário um substancial aumento de carga tributária, e não apenas em um único ano, mas de forma recorrente”, afirma ele, economista-chefe da Ryo Asset.
Barros observa que, pela nova regra, o
gasto nunca recua. O ajuste é focado em ampliar a arrecadação. “Com a economia
e arrecadação crescendo, a despesa avança; com a economia e arrecadação
decrescendo, a despesa segue avançando”, aponta o economista. Nesse cenário,
resta aumentar as receitas para cumprir as metas de resultado primário (que
exclui gastos com juros) para o governo federal, apresentadas em bandas. Para
2023, o intervalo fica entre um déficit de 0,75% do PIB e um rombo de 0,25% do
PIB; para 2024, a banda vai de um déficit de 0,25% do PIB a um superávit de
0,25% do PIB.
Um aumento de carga tributária acompanhado
por simplificação do sistema de tributos, redução de distorções e diminuição de
renúncias fiscais pode não ser um problema. O ponto é se isso é factível. No
primeiro semestre, o governo pretende fazer avançar a reforma tributária do
consumo, para tornar o sistema menos complexo e mais racional, em tese sem
aumento de carga. Num segundo momento, o foco será na tributação da renda. Além
disso, Haddad planeja reduzir benefícios fiscais. “Em princípio existe espaço
para uma simplificação e redução de distorções tributárias, mas a dúvida recai
mais na capacidade do governo em caminhar nessa direção, dados os lobbies e
grupos bem organizados que historicamente têm conseguido manter seus
privilégios e regimes especiais”, diz Barros.
Ele lembra que, no debate recente da
reforma tributária, esses lobbies têm retornado com força. Já se fala alíquotas
diferenciadas e exceções para alguns setores como saúde, educação, transportes,
construção civil. Tampouco deve haver mudanças nos benefícios da Zona Franca de
Manaus, do Simples e de entidades filantrópicas. As renúncias fiscais neste ano
são estimadas em R$ 456 bilhões, equivalentes a mais de 4% do PIB.
Barros destaca ainda que o piso para o
crescimento dos gastos totais, de 0,6% acima da inflação, não parece factível.
Quando se analisa cada rubrica, a taxa de expansão média de todos as despesas
deve ficar acima desse nível, tornando impraticável reduzir o ritmo de avanço
dos gastos agregados para 0,6% num momento adverso para as receitas. “Só as
despesas com a Previdência, que respondem por cerca de 45% do gasto [primário,
que exclui juros], crescem anualmente a uma taxa em torno de 1,5% a 2% acima da
inflação”, afirma Barros. Se todas as outras despesas não tiverem crescimento
real (descontada a inflação), apenas os gastos com aposentadorias fariam o
total de dispêndios aumentar 0,7% a 0,9% em termos reais, estima Barros. Ele
observa ainda que, com a substituição do teto de gastos pelo novo regime
fiscal, as despesas com saúde e educação voltarão a seguir as regras da
Constituição, passando novamente a ser vinculadas à receita. Para completar, há
um piso para os investimentos. Tudo isso comprime o espaço fiscal para acomodar
outras despesas. “Ou seja, para atender a todas as preferências reveladas de
gastos, a receita precisa surpreender muito, sempre”, resume Barros.
O projeto apresentado por Haddad prevê que
as despesas tenham o crescimento anual limitado a 70% da variação da receita.
Se o resultado primário ficar abaixo do piso da banda, a expansão dos gastos no
ano seguinte fica limitado a 50% do ritmo de avanço da arrecadação. Para
Barros, o gatilho em caso de descumprimento é “frágil”, pois o gasto segue com
o crescimento mínimo acima da inflação.
Haddad prometeu para esta semana a
apresentação de medidas que elevem as receitas entre R$ 100 bilhões e R$ 150
bilhões. O aumento da arrecadação, porém, não poderá ficar restrito a este ano.
Para cumprir as metas de resultado primário, a arrecadação terá que sempre
crescer com força, como enfatiza Barros. E isso terá de ocorrer, vale lembrar,
num cenário em que a inflação e os preços de commodities deixarão de inflar as
receitas, como nos dois últimos anos, e em que as estatais deverão pagar menos
dividendos ao Tesouro, por determinação do presidente Luiz Inácio Lula da
Silva.
A retomada da atividade é outro fator que
pode impulsionar as receitas, nas parece improvável uma recuperação da economia
significativa em breve. Se o novo arcabouço fiscal for percebido como crível,
reduzindo os juros futuros e ajudando a controlar as expectativas de inflação,
o Banco Central (BC) poderá começar a cortar os juros. A queda da Selic,
contudo, não deve ocorrer no curtíssimo prazo, e o BC tampouco deve promover
reduções substanciais da taxa neste ano. No longo prazo, o crescimento
sustentado a taxas mais elevadas depende da melhora da produtividade, que tem
mostrado um desempenho muito fraco no Brasil nos últimos anos.
Nas próximas semanas, haverá negociações no
Congresso para aprovação do novo arcabouço fiscal. A expectativa é que a nova
regra seja aprovada sem grandes dificuldades.
No entanto, também será necessário avaliar
as medidas a serem adotadas pelo governo para cumprir as metas fiscais até
2026. Que iniciativas serão tomadas para elevar receitas? O Congresso vai
aprovar aumentos de impostos? O governo vai conseguir diminuir renúncias
fiscais? Há o risco de que se recorram a medidas que causam distorções na
economia, como a taxação de exportações? Haverá algum controle mais firme de
algumas despesas? Todos esses fatores serão importantes para definir o quanto a
nova regra fiscal vai reduzir - ou não - as incertezas sobre as contas
públicas. O anúncio do arcabouço foi o primeiro passo nesse processo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário