O Globo
Se fizeram isso com o Pontífice, o que não
fariam no cotidiano contra simples mortais, cujas imagens podem ser
manipuladas?
Três imagens circularam com intensidade na
internet: o Papa
Francisco vestindo um estiloso casaco branco, Trump sendo preso
e Macron sentado na rua, em cima de uma lata de lixo. As imagens são muito
verossímeis porque foram criadas por inteligência artificial (IA). O fato de
terem viralizado estimula a discussão sobre IA e seu controle, debate já
iniciado também no Brasil.
Como se não bastasse a complexidade do
controle das redes sociais, surge mais um desafio: como tornar os algoritmos
transparentes, como proteger os dados, como frear a corrida das grandes
plataformas para oferecer os serviços da IA. E, de um ponto de vista social,
como salvar empregos que podem desaparecer com esses novos serviços. Sou
favorável ao debate sobre controle desses instrumentos, que têm grande
influência na saúde da democracia. Mas, como tenho enfatizado, prefiro também
desenvolver uma outra estratégia.
Nestas tardes quentes de Ipanema, visito sempre a Finlândia. O que procuro num país tão distante? O antídoto para fake news, desinformação e discurso de ódio. Creio que a Finlândia o obteve instituindo desde 2013 um projeto de educação para a mídia e redes sociais. Esse projeto foi remodelado em 2019 e não se destina apenas aos alunos nas escolas. Há vários cursos para idosos.
Nas aulas de matemática, as crianças
aprendem também a não ser manipuladas pelos números: nas aulas de arte,
conhecem os métodos de manipulação de imagens e chegam ao ponto de aprender
também a localizar textos escritos por estrangeiros, passando-se por
finlandeses. Esse detalhe, creio, deve ser uma espécie de defesa contra o
poderoso vizinho, a Rússia, especialista em campanhas de desinformação.
Recentemente, a primeira-ministra da
Finlândia, Sanna Marin, foi filmada cantando e dançando. Algumas professoras
mostraram aos alunos como repercutiu no TikTok e no Twitter. Nessas redes
sociais, havia insinuação de que ela estava drogada. As professoras, que já
conheciam o resultado do exame negativo, aproveitaram para mostrar como
funciona a desinformação.
A Unesco também lançou seu curso na mesma
direção. Chama-se em inglês Media and Information Literacy. Foi traduzido para
o português e é reproduzido pela Universidade de Campinas. Aliás, as
universidades de São Paulo trabalham esse tema há algum tempo. Tenho
acompanhado esse curso da Unesco. Vejo nele algumas coisas que deveriam ser
divulgadas mais amplamente, como a tática contra teorias conspiratórias. Há um
jeito de lidar com o assunto, sem negativas veementes para não romper o
diálogo. Uma das vantagens do curso da Unesco é que, com base no artigo 19 da
Declaração Universal dos Direitos Humanos, prepara as pessoas não apenas para
interpretar as mídias, mas para participar delas e se expressar com eficácia.
O casaco branco do Papa apenas estimulou
que eu apressasse minhas pesquisas e começasse a mostrar algo na televisão. É
urgente combinar as duas estratégias: controle legal e educação para a mídia e
informação digital. A Finlândia foi considerada o país mais resistente a fake
news entre 38 pesquisados na Europa. Acho que é o caminho mais eficaz para, de
certa forma, proteger não só as crianças, mas também evitar que as novas
tecnologias subvertam a democracia.
A atividade para mim é nova. Vou me dedicar
a ela com calma, para não repetir as descobertas da juventude que me deixaram
um pouco chato quando me apaixonava por um tema. Cientistas pediram às
plataformas que atenuem sua corrida desenfreada para oferecer os serviços de
IA. Essa pausa, caso seja conseguida, nos daria mais tempo também para preparar
as defesas e incorporar novas técnicas de proteção.
Se fizeram isso com o Papa, o que não
fariam no cotidiano contra simples mortais, cujas imagens podem ser
manipuladas, cujas vozes podem ser reproduzidas? Enfim, cada um de nós pode ser
duplicado e se voltar contra nós mesmos. É assustador.
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