Bolsa Família ganha mais recursos, mas perde foco e eficácia
O Globo
Programa deverá tirar 3 milhões da pobreza
extrema, a custo bem maior que no desenho original, revela estudo
O Bolsa Família foi um instrumento vital na
redução da pobreza extrema no Brasil. Mas, depois da pandemia, quando o governo
distribuiu o Auxílio Emergencial, foi desvirtuado. Rebatizado como Auxílio
Brasil, passou a distribuir R$ 600 mensais por família sem levar em conta o
número de filhos nem cobrar contrapartidas como frequência escolar ou carteira
de vacinação. Agora, no resgate do nome original, o governo pretende retomar
também o espírito original do programa.
Além do valor de R$ 600 destinado a cada família, serão distribuídos R$ 150 por criança de até 6 anos e R$ 50 por filho de 7 a 18 anos ou gestante. O benefício médio, pelas contas do governo, ficará em R$ 714. O orçamento à disposição do Bolsa Família, que já havia triplicado de R$ 35 bilhões para R$ 100 bilhões, recebeu novo incremento para R$ 175 bilhões. Como resultado do pente-fino no Cadastro Único dos beneficiários de programas sociais, o governo afirma ter retirado do programa 1,5 milhão de famílias. O objetivo é atender 20,9 milhões de famílias, ou cerca de 55 milhões de brasileiros.
Pelos últimos dados do IBGE, havia em
dezembro do ano passado 12,47 milhões de brasileiros em situação de miséria ou
pobreza extrema, definida pela renda mensal per capita de até R$ 208 mensais.
Se o novo Bolsa Família já estivesse em vigor, haveria 3 milhões a menos de
pobres e miseráveis, revela um estudo do economista Daniel Duque, do Instituto
Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre-FGV).
O ponto forte do Bolsa Família sempre foi o
foco: fazer o dinheiro chegar a quem precisa. Foi isso que permitiu a um
programa que custava em torno de 0,4% do PIB gerar R$ 1,78 por cada real nele
investido, segundo o Centro de Políticas Sociais, da FGV Social. Esse impacto
equivale ao triplo do gerado pelos benefícios da Previdência e é 50% maior que
o Benefício de Prestação Continuada (BPC), destinado a idosos de baixa renda ou
deficientes.
Para Duque, é preciso recuperar o desenho
original do Bolsa Família para aumentar seu impacto na redução da pobreza. As
mudanças promovidas pelo governo vão na direção certa, diz ele, mas ainda é
preciso aperfeiçoá-lo. “O estrago feito no desenho do programa foi muito
grande”, afirma. Ele sugere um benefício variável para crianças e jovens até 17
anos, maior nas faixas de 15 a 17, para que possam concluir o ensino médio.
Outra ideia é um Benefício de Superação da Pobreza Extrema, para complementar
uma quantia mínima por integrante da família.
No curto prazo, segundo Duque, o aumento do
Bolsa Família favorecerá as economias locais de regiões rurais. “O efeito
agregado deve ser mais diluído, mas ainda assim deverá aumentar o consumo das
famílias em torno de 3%”, diz. Será um alento. Mesmo assim, ao tentar atender
55 milhões ante uma população de 12,5 milhões na pobreza extrema, o programa
poderá trazer mais popularidade ao governo, mas não terá o mesmo foco nem a
mesma eficiência do passado.
Tuberculose voltou a preocupar com choque
da pandemia na saúde
O Globo
Sem descuidar da vacinação contra a
Covid-19, país precisa enfrentar males do passado que ainda nos assombram
A marca de 700 mil mortos por Covid-19,
atingida pelo Brasil na semana passada, reflete mais o passado errático de
enfrentamento à pandemia que o estágio atual da doença, controlada pela vacina.
As mortes diárias por milhão de habitantes, que ultrapassaram 14,5 no auge da
pandemia, hoje não chegam a 0,2. Sem deixar de dar atenção às novas variantes
do coronavírus nem descuidar das campanhas de vacinação, o país também precisa
dirigir energia a velhas mazelas que ainda assombram em pleno século XXI.
É o caso da dengue, que registrou no ano
passado mais de 1,4 milhão de casos e 1.016 mortes, recorde desde o
ressurgimento da doença nos anos 1980. Também da tuberculose, o mal do século
XIX que, a despeito da existência de vacinas e tratamento disponíveis na rede
pública, ainda causa estragos, especialmente na população mais pobre. Dados do
Ministério da Saúde demonstram que a tuberculose voltou a crescer no Brasil.
Foram registrados 78.057 casos em 2022, aumento de 4,9% em relação a 2021, ano
em que o país já registrara recorde de mortes (5.074). A situação se torna mais
preocupante porque, até 2017, os números mostravam estabilidade ou queda.
Os mais vulneráveis são a população de rua,
detentos, pacientes com HIV, imigrantes e comunidades indígenas. O combate à
tuberculose foi prejudicado pela pandemia, que reduziu as notificações,
permitindo que doentes não diagnosticados continuassem a transmiti-la. Os
principais focos são capitais como Manaus, Belém, Rio Branco, Recife e Rio de
Janeiro. Com sintomas como febre, tosse e emagrecimento, a tuberculose debilita
o paciente, agravando as condições econômicas e sociais das famílias.
A vacina BCG, aplicada logo após o
nascimento, protege contra as formas graves da doença, mas a cobertura vem
despencando. Até 2018, estava acima de 95%. Depois de 2019, caiu para menos de
88%. Embora o tratamento seja oferecido em postos de saúde, não é simples.
Primeiro, demanda diagnóstico preciso num país com carências crônicas no
atendimento básico. Além disso, leva pelo menos seis meses e exige fornecimento
regular de medicamentos e disciplina do paciente. Se tratada no início e de
forma adequada, a doença tem cura.
O Ministério da Saúde lançou neste mês uma campanha nacional de combate à tuberculose. Promete aumentar a vacinação, ampliar acesso a diagnósticos e ações de prevenção, além de estabelecer metas para reduzir a incidência e as mortes até 2035. Despertar para o problema e planejar ações são passos importantes, mas não se resolverá o problema da tuberculose sem melhorar a qualidade do atendimento de saúde e as condições de moradia. São necessários campanhas para ampliar a vacinação, profissionais de saúde, testes para diagnóstico e medicamentos para tratamento, mesmo nas áreas remotas. A persistência da tuberculose, que deveria estar controlada há décadas, é o retrato da saúde pública no Brasil.
Mal-estar econômico
Folha de S. Paulo
Contra pessimismo captado pelo Datafolha,
Lula precisa de medidas difíceis
Não é confortável a situação da economia
percebida pelos brasileiros. A tendência de melhora das avaliações no ano
passado deu lugar a uma constatação mais forte de estagnação nos últimos meses.
Mais grave, há clara deterioração das expectativas para a evolução do emprego,
dos salários e da inflação.
Em linhas gerais, essa é a percepção
captada pela pesquisa mais recente do Datafolha, que colhe os
primeiros impactos do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Somente 23% acham que a situação do país
progrediu nos últimos meses, ante 34% no final de outubro, às vésperas do
segundo turno da eleição presidencial. Os que acreditam em piora também caíram,
de 42% para 35%, mas o movimento mais notável se deu entre aqueles que não veem
mudança, que saltaram de 23% para 41%.
Quanto ao futuro, o aumento do pessimismo é
inequívoco. Em outubro, apenas 13% dos brasileiros aptos a votar consideravam
que a economia do país iria piorar. O percentual subiu a 20% em dezembro e
atingiu 26% agora. Já os que esperam melhora caíram de 62% para 49% em dezembro
e 46% em março.
Em aspectos mais específicos, desde
dezembro ampliou-se a parcela dos entrevistados que preveem mais inflação (de
39% para 54%), mais desemprego (de 36% para 44%) e perda do poder de compra dos
salários (21% para 31%).
Tais projeções têm amparo na realidade.
Depois de uma expansão surpreendente no primeiro semestre do ano passado, a
atividade econômica se encontra em desaceleração, o que já afeta o mercado de
trabalho. Já a alta de preços tem se mostrado resistente.
Ao mesmo tempo, Lula tem feito má gestão
das expectativas desde a vitória nas urnas, com ataques ao Banco Central,
críticas às metas de inflação e declarações contra a austeridade orçamentária.
O Datafolha ajuda a entender a insistência
do mandatário na ofensiva contra os juros —que tem o apoio de esmagadores 80%,
enquanto 71% consideram que as taxas estão acima do adequado.
É compreensível o anseio geral por juros
mais baixos. Entretanto as pressões
públicas de Lula sobre o BC, somadas às intenções gastadoras do governo,
acabam por dificultar a queda da inflação esperada e, assim, da taxa Selic.
A administração petista não contará com
nenhuma bonança imediata na economia. Diante de um quadro político também pouco
amigável, é natural que a popularidade do atual presidente se compare aos
níveis modestos obtidos por Jair Bolsonaro (PL) no mesmo período de mandato.
Cumpre tomar agora as decisões difíceis que
poderão permitir uma melhora mais duradoura do cenário nos próximos anos.
Privilégio revogado
Folha de S. Paulo
Fim da prisão especial é avanço, mas ainda
devem-se combater outras distorções
Na última quinta-feira (30), o Supremo
Tribunal Federal pôs fim a um
dos aspectos mais anacrônicos do sistema carcerário brasileiro: a chamada
prisão especial, até decisão penal definitiva, para pessoas com
diploma de ensino superior. A corte decidiu que a norma do Código de Processo
Penal é incompatível com a Constituição.
Instituída no governo provisório de Getúlio
Vargas na década de 1930, a prisão especial não é uma modalidade de privação de
liberdade antes da condenação, mas sim "apenas uma forma diferenciada de
recolhimento da pessoa presa provisoriamente", segundo Alexandre de
Moraes, ministro do STF.
Trata-se de um privilégio sem
justificativa. O instituto ora revogado tão somente reforçava a hierarquia
social no cárcere.
Importante destacar que o benefício era
aplicado a prisões provisórias, aquelas antes de uma sentença condenatória
definitiva, um dos gargalos que alimenta o encarceramento no Brasil.
Há um abuso no uso dessa modalidade.
Segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional, ligado ao Ministério da
Justiça, em junho de 2022, 29,1% dos mantidos no sistema ainda aguardavam uma
sentença final.
Assim, a norma anulada pelo STF conferia
vantagens a detentores de diploma universitário, que ficavam apartados dos
problemas causados pela superlotação dos presídios.
Em vez de conceder privilégios, é
imperativo combater as verdadeiras mazelas do cárcere no país.
De um lado, devem-se fortalecer mecanismos
de fiscalização das condições a que estão submetidos os presos, provisórios ou
não —segundo pesquisa da Pastoral Carcerária de 2019, 58% das denúncias de
tortura em presídios envolviam agressão física, e 41% citavam condições de vida
degradantes.
De outro, é preciso admitir que o
país prende muito e prende mal. A Lei de Drogas, sancionada em 2006,
não diferenciou usuários de traficantes por critérios objetivos, gerando —com o
punitivismo peculiar ao Judiciário— uma explosão no número de prisões, desde
então, por crimes relacionados a drogas.
Entre 2005 e 2019, o percentual de presos
por tráfico passou de 14% para 27,4% —no caso das mulheres, essa taxa chega a
54,9%.
Retirado o privilégio da prisão especial, resta ainda ao poder público enfrentar o alto encarceramento e as violações de direitos humanos, que atingem principalmente a população negra e pobre do país.
A política põe um freio em Lira
O Estado de S. Paulo.
Formação de bloco partidário fora do radar
do governo e de Arthur Lira mostra que o presidente da Câmara não controla tudo
e indica a viabilidade de alternativas ao PT e ao Centrão
Apesar das pretensões megalomaníacas do
presidente da Câmara, Arthur Lira, ele não controla tudo o que acontece na Casa
– e isso é uma excelente notícia para o País. No dia 28 de março, foi
oficializada a formação de um superbloco de cinco legendas (MDB, PSD,
Republicanos, Podemos e PSC), com 142 deputados ao todo. É maior do que a
bancada do PL, a legenda com mais cadeiras na Câmara (99), e a soma de todos os
partidos de esquerda. Juntos, PT, PCdoB, PV, PDT, PSB, PSOL, Rede e
Solidariedade têm 131 deputados.
A composição do novo bloco pegou de
surpresa tanto o presidente da Câmara como o governo federal. Tal articulação
revela um ponto fundamental do regime democrático. Os partidos não podem ser
submissos às estruturas do poder estatal. Só se tiverem vida própria estarão
aptos a exercer o papel que lhes cabe, que é defender suas causas e representar
seus eleitores. Certamente, as chefias do Legislativo e do Executivo não
apreciam essa independência, mas é justamente essa autonomia que assegura o
funcionamento saudável do regime democrático. Efeito imediato do novo bloco
partidário é, por exemplo, a diminuição do poder de Arthur Lira nas indicações
para as comissões mistas destinadas a analisar as medidas provisórias.
Outro aspecto positivo suscitado pelo novo
grupo é a redução da fragmentação partidária. Agora, entre federações, blocos e
partidos, há 13 bancadas na Câmara. Mesmo sendo ainda um número grande,
trata-se de avanço significativo em relação ao que ocorria anos atrás, quando
mais de 30 legendas operavam individualmente na Casa. Não se sabe o que de fato
vai ocorrer, mas há hoje espaço para maior racionalidade e maior conteúdo
programático nas negociações políticas. Mais do que apenas aplaudir o fenômeno,
trata-se de exigir que essa oportunidade seja efetivamente aproveitada.
Mas talvez o principal ponto a ser
destacado na formação da maior bancada da Câmara é que, ao contrário do que
muitos poderiam pensar, a política continua sendo o caminho mais efetivo para
que a sociedade não fique refém do poder estatal.
Sempre presente no imaginário coletivo
nacional, o sentimento antipolítica intensificou-se em 2013 e, de forma
especial, com o bolsonarismo a partir de 2018. Para muitos, o caminho da
oposição deveria ser pavimentado necessária e exclusivamente pelo confronto com
as instituições. Esse foi o discurso de muitos parlamentares eleitos em 2018 e
em 2022. Por exemplo, na visão de alguns senadores bolsonaristas, a tarefa mais
importante do Senado é instaurar processos de impeachment contra ministros do
Supremo Tribunal Federal (STF) como meio de pressionar o Judiciário e inflamar
seguidores. Apesar de fazer muito barulho nas redes sociais, esse tipo de
política – na verdade, é a negação da política – nada constrói e ainda deixa a
pista livre para o governo atuar como bem entender. Não faz real oposição ao
exercício do poder.
Eis o fato incontestável. Os parlamentares
que apenas gritam não geram nenhum temor entre as lideranças do Congresso e no
Palácio do Planalto. O que causa apreensão em Arthur Lira e no governo federal
é a efetiva capacidade de articulação política, como a que se viu na formação
do superbloco no dia 28 de março. São as lideranças políticas articuladoras da
bancada com 142 deputados que podem oferecer algum óbice aos planos do PT e aos
do Centrão. Não é demais lembrar que foi Gilberto Kassab quem, com a criação do
Partido Social Democrático (PSD) em 2011, surpreendeu Lula e alterou a dinâmica
de forças no Congresso de então.
Há quem se iluda pensando que o
bolsonarismo poderá constituir algum tipo de oposição ao governo Lula no
Congresso. Mesmo quando Jair Bolsonaro era presidente da República, sua turma
foi incapaz de se organizar e de articular politicamente no Legislativo.
Brincaram de ser a nova direita no País, mas foram tão somente a antítese da
civilidade e da República. Agora, são capacho de Arthur Lira, o que não é nenhuma
novidade. A novidade é que tem gente adulta na Câmara fazendo política.
UE dá urgência à diversificação energética
O Estado de S. Paulo.
Decisão da UE de acabar com a produção de
carros a gasolina e diesel até 2035 mostra que a janela dos combustíveis
fósseis está se fechando e que a diversificação energética é inadiável
Há dois séculos os combustíveis fósseis são
o sangue negro que corre nas veias da indústria, impulsionando uma revolução
social e tecnológica sem precedentes. Mas é consenso que o dióxido de carbono
aquece o planeta, degrada a natureza e ameaça, a longo prazo, a prosperidade
humana. O dilema é que, se são letais para o futuro, os combustíveis fósseis
ainda são vitais para o presente.
As distorções de um mau equacionamento desse
dilema têm impactos. Para a indústria dos fósseis – no caso do Brasil,
particularmente a do petróleo – é evidente que mais dos mesmos negócios de
sempre é, a longo prazo, uma rota suicida. Segundo a Agência Internacional de
Energia (AIE), a demanda por petróleo começará a declinar até 2030. Estratégias
caras e com retorno a longo prazo, como as que o governo vem sinalizando ao
interromper a venda de refinarias e investir em novas ou explorar bacias
distantes e incertas, exigem prudência. A União Europeia (UE) acaba de anunciar
o fim da produção de carros a gasolina e diesel até 2035. É um sinal de que a
janela está fechando e é preciso atentar às portas que estão abrindo.
Os ambientalistas, por sua vez, costumam
resumir o desafio energético à eliminação dos fósseis. Mas, mesmo no cenário de
“carbono zero”, a AIE estima que em 2050 a demanda mundial de petróleo ainda
será de 20 milhões de barris por dia. E hoje os royalties são fonte crucial de
recursos para o Brasil enfrentar desafios como a pobreza.
Se é óbvio que uma “transição” energética
sustentável não pode ser entendida como “ampliação” das fontes fósseis,
tampouco pode ser sua pura “redução”. Em certa medida ela é ambas: ampliação a
curto prazo e redução a longo prazo. A ampliação de hoje viabilizará
investimentos nas tecnologias que garantirão a redução amanhã. A chave do
problema é a diversificação das fontes energéticas. Mas, nesse quesito, seja o
Estado brasileiro, seja sua petrolífera, estão defasados.
O País tem imensas vantagens comparativas.
Sua matriz energética já é uma das mais limpas do mundo e está longe das
pressões ambientais que países desenvolvidos enfrentam. Mas, antes de
aproveitar esse bônus para galvanizar a diversificação, o Brasil o tem usado
para justificar uma certa acomodação.
O setor de petróleo e gás continua a gozar
de vultosos subsídios para, supostamente, estimular o desenvolvimento social no
curto prazo. Mas, além de beneficiarem mais as indústrias do que famílias
pobres – que seriam mais bem servidas com esses recursos por transferências de
renda ou serviços públicos –, os subsídios desencorajam a eficiência e a
diversificação energética.
Consequentemente, ainda que o Plano
Estratégico da Petrobras e seu presidente, Jean Paul Prates, falem com
entusiasmo da expansão rumo aos renováveis, na prática a estratégia da empresa
para o futuro continua aferrada aos fósseis. No ano passado, por exemplo, ela
teve lucro recorde, o que é excelente. Mas cerca de 80% dos investimentos
seguem canalizados para a exploração de petróleo e gás. Seus principais
investimentos em descarbonização continuam a ser em tecnologias para reduzir
emissões das fontes fósseis. A ironia é que multinacionais movidas
exclusivamente pelo lucro têm investido muito mais em energia limpa do que a
Petrobras, que, tendo como maior acionista a União, deveria combinar o lucro
com interesses nacionais.
O foco excessivo e imediatista no petróleo
não é bom para o meio ambiente e, a longo prazo, não é bom para a empresa e nem
para o Brasil. Táticas baseadas no petróleo ainda fazem sentido no curto prazo.
Mas essa fonte de energia está com os dias contados. Alicerçar nela a
estratégia de desenvolvimento sustentável nacional é como confiar na luz de
estrelas mortas. O astro mais próximo, maior, mais quente e mais luminoso das
energias renováveis já despontou no horizonte. O Brasil e sua principal empresa
de energia têm todas as condições naturais e técnicas de aproveitar a aurora
dessa nova fonte de luz e força para traçar uma rota vantajosa para a sociedade
e o meio ambiente.
Sofrimento sem água e esgoto
O Estado de S. Paulo.
Relatório da ONU alerta para a gravidade de
um problema que o Brasil tem como resolver
A ONU lançou há alguns dias um relatório que
estima que 26% da população mundial sofre com a falta de acesso à água potável
− o impressionante número de 2 bilhões de pessoas. A situação é ainda pior no
que diz respeito a saneamento básico, com 46% dos habitantes, ou 3,6 bilhões de
pessoas, sem dispor desse tipo de serviço em condições adequadas. Os dados são
referentes a 2020 e dão a exata dimensão do tipo de desafio que a humanidade
precisa superar para garantir direitos básicos em escala global.
A escassez de água potável é ameaça direta
à sobrevivência. Somada à falta de esgoto, gera efeitos perversos sobre o
desenvolvimento econômico e social, com graves reflexos na saúde da população,
notadamente na das crianças. A propósito, estima-se que a falta de higiene
provoque 1,4 milhão de mortes por ano. Não à toa, o Objetivo de Desenvolvimento
Sustentável (ODS) número 6 da ONU estipulou a meta de garantir água potável e
saneamento para todos os habitantes do planeta até 2030. Algo que, no atual
ritmo, não será atingido.
Ciente do atraso, a ONU promoveu
recentemente, em Nova York, a maior conferência internacional sobre o tema
desde 1977. O encontro serviu de palco para o lançamento do Relatório de
Desenvolvimento Mundial da Água 2023, que mostra que o consumo global vem
crescendo no ritmo de 1% ao ano há quatro décadas. A previsão é que a tendência
se mantenha até 2050, puxada pelos países em desenvolvimento, que são os que
mais sofrem com a falta de tecnologia e de capacidade de investimento.
O documento chama a atenção também para a
poluição dos rios e para as mudanças climáticas, fatores que deverão acentuar o
problema. O aquecimento global, segundo o relatório, levará partes da América
do Sul, do Leste Asiático e da África Central a enfrentar escassez sazonal de
água. Vale notar que a América Latina e o Caribe são citados como a região onde
mais se agravou o estresse hídrico no período 2008-2018.
De fato, o Brasil tem motivos para se
preocupar. Na mesma semana da reunião da ONU em Nova York, o Instituto Trata
Brasil divulgou a 15.ª edição do Ranking do Saneamento, que mostrou que quase
35 milhões de pessoas sofrem com a falta de acesso à água potável no País,
enquanto cerca de 100 milhões vivem em áreas sem rede de esgoto. Um desastre.
Como se não bastasse, a perda média de água tratada nas cem cidades mais
populosas chega a 36%, um desperdício inaceitável.
O histórico déficit de serviços de água e esgoto já penalizou demais a população brasileira. Foi o que levou o Congresso a aprovar, em 2020, o marco legal do saneamento − iniciativa alinhada às melhores práticas internacionais, capaz de atrair investimentos privados e de livrar o Brasil de um atraso inaceitável. Já passou da hora de o País fazer o dever de casa e contribuir decisivamente para reduzir as estatísticas de desabastecimento e falta de saneamento básico. O governo federal ajudará muito se não mexer no marco. Não é com retrocessos que se vai garantir água encanada e rede de esgoto.
Argentina está perto de uma nova crise
econômica
Valor Econômico
Com inflação acima de 100% e reservas perto
do zero, país caminha para a recessão
A crise cambial volta a rondar a Argentina,
as reservas internacionais se aproximam de zero e não há muitos meios
adicionais de o governo obter dólares para evitá-la. Para piorar um quadro que
nos últimos anos nunca foi bom, o campo argentino enfrenta uma de suas piores
secas, com triplo impacto: redução das exportações agrícolas, a principal fonte
de divisas externas do país; diminuição da arrecadação tributária, por meio da
tributação especial aos exportadores, e aumento do custo de vida, que em
fevereiro ultrapassou os 100%. O momento é delicado. Há uma eleição
presidencial a caminho, o governo está enfraquecido e o próximo, seja qual for,
terá de assumir sob imensa pressão, com pouco espaço e tempo para agir.
Não há coesão no governo para enfrentar uma
instabilidade que pode se transformar em crise aberta antes das eleições de 22
de outubro. Desde o início, o presidente Alberto Fernández e sua vice, Cristina
Kirchner, discordam a respeito dos rumos que o país deveria tomar e disputam
espaços de poder. A divisão revelou-se desastrosa para a Argentina e para
ambos, a ponto de que agora nenhum dos dois tenha muito apetite para tentar a
reeleição. Cristina disse que não pretende fazê-lo, por enquanto. Fernández não
desistiu ainda, mas suas chances de sucesso são remotas e não parece haver
programa ou apoio político capazes de mudar seu destino.
Um dos grandes pontos de desacordo entre o
presidente e sua vice é o que mantém ainda a Argentina de pé: o acordo com o
Fundo Monetário Internacional que garantiu US$ 44 bilhões em auxílio
financeiro, que só começará a ser pago na próxima administração. O FMI queimou
parte de seu prestígio ao liberar o maior pacote de apoio a um país ao governo
liberal de Mauricio Macri, cujo resultado foi um retumbante fracasso, piorou a
situação do país e abriu caminho para a volta dos peronistas.
A tentativa de manter a economia à tona foi
terceirizada para o peronista Sergio Massa, porque Fernández e Cristina não se
entendiam. Político experiente, com facção própria no peronismo, Massa aceitou
um péssimo emprego com a esperança de que a missão poderia, se bem sucedida,
abrir-lhe o caminho para a Presidência da República. Essa ambição parece ter
ficado no passado.
A falta de divisas estrangula a Argentina.
No primeiro trimestre, US$ 2,89 bilhões saíram do Banco Central para impedir
desvalorizações, enquanto a receita em dólares é cadente. Cálculos de analistas
privados estimam que a reserva líquida do país, disponível de imediato, não
ultrapassa US$ 2 bilhões. Sergio Massa e o presidente Fernández perambularam há
pouco em Washington pelo Tesouro americano e FMI. Houve aparente sinal verde do
Clube de Paris para reescalonamento da dívida, enquanto, antes, o FMI aprovou a
quarta revisão do acordo, que põe a caminho de Buenos Aires US$ 5,3 bilhões.
Massa tenta ainda liberar US$ 1 bilhão da linha de swap que a China mantém com
a Argentina.
Mas a inflação, o sinal maior para que os
argentinos fujam de sua moeda em direção ao dólar, não dá tréguas. Pelo acordo
com o FMI, ela deveria cair para perto de 50%, mas subiu, ultrapassou 100% e
segue em alta. O governo tem feito desvalorizações maiores do câmbio para
fechar um pouco a enorme brecha entre o oficial e o dólar paralelo (blue), o
que só piora a inflação. O crescimento perdeu fôlego e a recessão está próxima.
Os meios para economizar divisas
escasseiam. O governo criou o dólar soja, para pagar uma cotação maior que a
oficial aos exportadores do produto e obter mais divisas com isso. A safra
argentina de grãos é estimada em 84 milhões de toneladas, ante 130 milhões em
2022. Com isso, se prevê que a receita de vendas externas seja US$ 20 bilhões
inferior. Além disso, o governo tem criado mais obstáculos administrativos para
as importações, enquanto mantém o racionamento de US$ 200 para compras no
exterior de pessoas físicas.
O principal líder da oposição, Mauricio
Macri, anunciou que não mais concorrerá à Presidência, ampliando as chances da
oposição, que se livrou de carregar o peso de um líder desgastado,
corresponsável pela atual crise. Máximo Kirchner, filho de Cristina, e outros
radicais podem se lançar à empreitada. As pesquisas não registram muita
diferença entre os possíveis postulantes, com uma exceção grave. A crise sem
fim da Argentina fez crescer muito a intenção de voto da extrema direita de
Javier Milei. Ele pode implodir um sistema político carcomido, dominado há
décadas pelo peronismo - com efeitos nefastos.
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