Valor Econômico
Após arcabouço fiscal, reforma merece
máxima atenção
O livro “Saga Brasileira: a longa luta de
um povo por sua moeda” é o retrato mais vívido das idas e vindas do combate à
hiperinflação no Brasil. Narrado por quem acompanhou de muito perto as
maquinações dos economistas, os dilemas dos políticos e o sofrimento dos
cidadãos e das empresas, a obra de Miriam Leitão é o melhor registro histórico
de um tempo que, passadas quase três décadas da estabilização, é até difícil
relembrar ou, para os mais jovens, imaginar.
De acordo com o IBGE, de janeiro de 1980 a
junho de 1994, a inflação medida pelo IPCA foi de inacreditáveis
11.256.886.924.720,80%. O descontrole de preços corroía o poder de compra dos
salários, principalmente dos mais pobres. Sem horizonte de planejamento,
empresas deixavam de investir para aplicar no overnight. Reajustes desenfreados
distorciam os preços relativos e as pessoas perdiam a referência de valor dos
produtos e serviços.
Pôr fim a esse descalabro envolveu um longo
processo de tentativas e erros que passou por cinco planos econômicos (Cruzado,
Bresser, Verão, Collor I e II) e padrões monetários (de cruzeiro a cruzado,
cruzado novo, cruzeiro novamente e cruzeiro real) até finalmente se atacar o
problema com a complexidade que ele exigia no Plano Real, de 1994.
O desafio imposto à aprovação da reforma tributária em 2023 vem sendo comparado à missão assumida por Fernando Henrique Cardoso ao ser nomeado ministro da Fazenda por Itamar Franco 30 anos atrás, em 19 de maio de 1993.
Parece incrível, mas os brasileiros haviam
se acostumado a conviver com uma inflação acima de 40% ao mês. Mecanismos de
indexação e correção monetária anestesiavam o caos; empresas mobilizavam
exércitos de contadores para lidar com as mudanças de regras e remarcação de
preços.
Conviver com cinco tributos diferentes, com
alíquotas e bases de incidência estabelecidos pela União, 27 Estados e mais de
5.500 municípios para cada bem e serviço comercializado no país não fica muito
longe, em bizarrice, do que lidar com um regime hiperinflacionário. Mas
artimanhas como créditos tributários, diferimentos, isenções, cálculos por
dentro e por fora, geram a falsa impressão de que a carga paga é menor do que
realmente é.
Como no passado, recursos que deveriam ser
empregados nos processos produtivos são destinados a contadores e advogados.
Provisões devem ser feitas nos balanços para dar conta do contencioso
tributário, assim como o capital de giro das empresas era drenado para o
overnight nos tempos da hiperinflação.
Naquela época, cada aumento de preços
praticado por uma empresa resolvia momentaneamente seu problema de caixa, mas
prejudicava a economia como um todo, pois alimentava o dragão da inflação.
Hoje, sempre que um setor obtém algum alívio com benefício tributário, o
sistema se torna mais confuso e desordenado.
Como na época da inflação acima de 1.000%,
perdemos a noção de preços relativos. Produtos semelhantes têm preços distintos
por causa de tratamentos tributários diferentes. Os pobres, como sempre, são os
que mais sofrem.
FHC assumiu o Ministério da Fazenda quando
ninguém mais acreditava ser possível controlar a hiperinflação. Enfrentou
desconfiança após diversos planos econômicos fracassados e a resistência de
setores que lucravam com o caos. Três décadas depois, seu xará Haddad
encontra-se na mesma situação. Todos desejam um sistema tributário simples e
eficiente, mas empresários alertam para os riscos de perdas generalizadas caso
seus pleitos não sejam atendidos.
Se Haddad quer uma transformação realmente
estrutural na economia, precisa seguir, na reforma tributária, os mesmos passos
de FHC no Real.
O senso de urgência exigiu preencher todos
os cargos da equipe econômica com um super time de profissionais de renome com
a missão de entregar um plano coerente de combate à hiperinflação: Pedro Malan,
Edmar Bacha, André Lara Resende, Persio Arida, Gustavo Franco, Winston Fritsch
e muitos outros.
A reforma tributária, contudo, ainda é a
“reforma de Bernard Appy”. A despeito da qualidade técnica do Secretário
Extraordinário de Haddad, é imprescindível atrair para o governo outros
economistas e tributaristas de peso para unir esforços nesta missão. Mudar
radicalmente o sistema não pode ser trabalho para “um exército de um homem só”.
Mais do que isso. Assim como FHC precisou
convencer Itamar Franco da complexidade de sua tarefa, Haddad precisa fazer com
que Lula se engaje e se comprometa publicamente com a reforma tributária, fato
que até agora não aconteceu.
O atual ministro da Fazenda também precisa
entender que as chances de sucesso da reforma tributária dependem de uma
estratégia bem-sucedida de comunicação. O lançamento do Plano Real foi
anunciado como o início de uma nova era em propagandas massivas no rádio, na TV
e na imprensa.
Membros da equipe econômica eram figuras
constantes em programas de entrevistas explicando para a sociedade mudanças tão
complexas, como a adoção da URV. Explicitar para consumidores e empresários as
vantagens do IVA deveria ter a mesma prioridade na agenda do Ministério da
Fazenda e na agência de comunicação do governo federal.
Há trinta anos, parecia impossível derrotar
a inflação. A adoção do Real teve um efeito tão profundo na sociedade brasileira,
que Miriam Leitão decidiu escrever um livro para retratar aquela saga e manter
a “memória acesa, depois da angústia apagada”, como cita o verso de Cecília
Meireles utilizando como epígrafe da sua obra.
Fernando Haddad e Lula precisam entender o tamanho
da responsabilidade de se aprovar a reforma tributária. Se não for pelo legado
que ela pode trazer à população brasileira, que seja pelos ganhos políticos que
o Plano Real trouxe para Itamar Franco e FHC três décadas atrás.
*Bruno Carazza é mestre em
economia e doutor em direito, é autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as
engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”.
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