Tomás Undurraga, da Universidade Alberto Hurtado, em Santiago, avalia a movimentação política no país em torno da redação da terceira tentativa de uma nova Constituição
Por Marcos de Moura e Souza / Valor Econômico
Há dez anos o Chile discute a criação de
uma nova Constituição para substituir a atual, que é herança do regime militar
de Augusto Pinochet. No entanto, nos últimos anos os eleitores rechaçaram nas
urnas dois projetos de uma nova Carta. A primeira, durante o governo Sebastián
Piñera; e a segunda, no ano passado, no governo do jovem presidente esquerdista
Gabriel Boric, de 37 anos. A terceira proposta está no forno. Um grupo de
juristas está delineando o esqueleto do texto e uma comissão de constituintes
eleitos no último dia 7 vai se encarregar de dar a redação final dessa terceira
proposta, que será levada às urnas em dezembro. Em entrevista ao Valor, o diretor Departamento
de Sociologia da Universidade Alberto Hurtado, em Santiago, Tomás Undurraga,
avalia a movimentação política no país em torno da redação da nova
Constituição. Fala sobre a vitória da direita (dos 50 assentos da comissão
constituinte, legendas de direita venceram 34), sobre José Antonio Kast, o
principal líder da direita chilena sobre um clima de descontentamento do país
em relação ao momento político e econômico e sobre o que esperar da proposta de
Constituição a ser definida nos próximos meses.
A seguir, os principais trechos da entrevista.
Valor: Se há uma avaliação de que a sociedade chilena
quer uma nova Constituição, como explicar que os eleitores escolheram uma maioria
de constituintes de direita que, de modo geral, não simpatiza com a ideia de
trocar a Carta atual?
Tomás Undurraga: Essa eleição
dos constituintes ocorreu em um momento em que a política local está muito
condicionada pela segurança pública e pela imigração. É uma agenda que o
governo não conseguiu controlar.
A questão da segurança tem a ver com a
dificuldade da polícia em impor ordem e o temor de que o narcotráfico avance. E
há também a situação do conflito entre o Estado chileno e grupos mapuches, numa
disputa histórica pela terra. Ambos os casos se manifestaram em cenas de
violência e produziram uma percepção na esfera pública de maior insegurança. Os
dados objetivos com relação à segurança não mudaram muito. Comparado com outros
países da América Latina, o Chile continua sendo um país relativamente seguro.
Mas a percepção de insegurança se transformou num tema público. O outro ponto,
que está muito ligado a esse, é a percepção de que a imigração está
descontrolada, em particular que a fronteira norte permitiu uma entrada massiva
de imigrantes da Venezuela, da Colômbia e do Peru.
Valor: Como tem sido postura do presidente Boric em
relação a temas de segurança e de fronteiras?
Undurraga: Depois do 4
de setembro de 2022, quando os eleitores rejeitaram a proposta de Constituição
que era bastante progressista, a agenda do governo passou a se focar em
segurança e migração. E essa não era bem a agenda do governo. Mas aumentou o
orçamento para compra de armamentos e equipamentos e o mesmo aconteceu no caso
da imigração. Boric tinha uma leitura mais aberta em relação a esse tema, mas
nesse contexto se tornou também muito mais estrito. Não a ponto de fechar
fronteiras ou de promover a discriminação de imigrantes, em absoluto. Mas
passou a reagir mais fortemente, por exemplo, em casos de expulsão de
imigrantes que tenham entrado de maneira legal e que tenham cometido algum tipo
de delito.
Nesse sentido, o governo perdeu
completamente a agenda.
E nas eleições dos constituintes as pessoas
votaram não pensando na Constituição, mas nos temas de segurança e imigração,
ou seja, foi um voto muito mais de contingência do que um voto no grupo de
conselheiros que vai representar a população na Constituição.
Valor: Quais temas deveriam ter influenciado mais os
eleitores na hora de escolher os constituintes?
Undurraga: Se o Chile
necessita de um Estado social e democrático de direitos ou se necessita de um
Estado subsidiário, o que significou privatizar as áreas que tradicionalmente,
estavam com o Estado, como Previdência Social, educação e saúde. Essa é uma
discussão fundamental que não foi feita. Ou se na área de saúde é necessário
aprofundar a privatização ou se é necessário reverter essa situação. O sistema
de previdência que é 100% privado deveria ter um componente resdistrubutivo
anterior ou não? Ou se Banco Central teria que ter outras funções que não
somente definir as taxas de juros, mas também se deveria ter em seu mandato
aumentar emprego. Na campanha esses temas ficaram totalmente invisíveis.
Houve também outro fator. Os constituintes
que participaram do processo anterior não puderam participar nesse processo. E
todos os que se apresentaram neste processo não podem disputar cargos eletivos
nos próximos dois anos. O que significa que os quadros mais importantes dos
partidos não se apresentaram. Enquanto que o Partido Republicano, que tinha uma
representação muito menor, colocou todos os seu quadros. Além disso, é
necessário reconhecer, o Partido Republicano foi quem fez a melhor campanha. Os
partidos do governo se dividiram em duas coalizões e ficaram com mensagens um
pouco difusas.
Valor: A economia também afetou a escolha dos
eleitores e a imagem do governo?
Undurraga: A inflação
subiu como nunca. Chegou a 10%. Há um ciclo de alta de muitos produtos,
alimentos, em especial. Também afetou os aluguéis e o crédito imobiliário.
Então houve uma depreciação do poder de compra do salário e isso afetou o
ambiente no país. Existe um mal estar real em relação ao dia a dia: uma
percepção de descontrole de ordem pública, uma percepção de descontrole nas
fronteira, uma percepção de que a vida está mais cara e uma percepção de que os
conflitos políticos estão em um nível de agonia.
Valor: O Partido Republicano, que obteve mais assentos
da constituinte (23) é liderado por José Antonio Kast, descrito no Chile como
ultradireitista. Quais posições dele o colocam nesse ponto no espectro político
local?
Undurraga: Kast se
localiza na extrema direita no arco político do Chile. No processo político
atual ele se opôs que o Chile tivesse um processo constituinte. Sua posição tem
sido de que o Chile não precisa de uma nova Constituição e que a Constituição
de Pinochet dá estabilidade e que é preciso mantê-la. Ele foi contrário a maioria
dos consensos, por exemplo, ao tema da paridade de gênero na formação do
governo. Sobre imigrantes, a posição dele é fechar as fronteiras e expulsar
qualquer Imigrante ilegal. Sobre direitos reprodutivos, eles são extremamente
conservadores, são contrários, por exemplo, aos avanços que passaram a vigorar
no Chile, depois de muita discussão, de possibilidade de aborto sob certas
condições.
Valor: Essas visões tenderão a marcar o projeto de uma
nova Constituição?
Undurraga: É preciso fazer
algumas observações. Depois do triunfo nas eleições deste mês, Kast fez um
discurso muito moderado porque seu esforço neste momento é de ganhar
credenciais democráticas. O que ele tenta demonstrar é um perfil moderado, de
alguém que quer evitar que aconteça o que aconteceu no processo anterior,
quando alguns líderes da esquerda disseram explicitamente que, como
constituintes, eles tinham maioria e iriam exercer sua maioria. Ele está sendo
mais cauteloso. Mas isso é discurso porque em termos de votações, em termos de
agenda, ele se mantém como extrema direita.
Valor: Kast já manifestou simpático a Bolsonaro. Ele
continua explorando essa identificação?
Undurraga: Kast é um político astuto. Houve um momento em que ele se associou a Bolsonaro porque queria passar o sinal de que, na avaliação dele, a direito a chilena não estava sendo suficientemente dura. Então, ele aproveitou questões relacionadas à segurança e endureceu a agenda e por isso que associou a Bolsonaro. Mas minha impressão é que atualmente ele está tentando se distanciar de Bolsonaro. Tenho impressão que o Kast é um grau mais moderado do que Bolsonaro, no sentido de que tem uma trajetória institucional um pouco mais respeitada.
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