O Globo
A receita para avançar é focar nas questões
de consenso, essenciais para uma regulamentação efetiva das redes
O Brasil costuma ter problemas com a lei.
Estamos no país onde “vale o que está escrito”, existem “leis para inglês ver”
e em que “há leis que colam e leis que não colam”. Portanto, no momento em que
o Brasil se prepara para escrever a regulamentação das redes sociais, o Projeto
de Lei 2.630, é importante evitar singularidades brasileiras, como jabuticabas
e jabutis.
Os recentes ataques a escolas em São Paulo, Santa Catarina e Goiás e a onda de posts disseminando o medo mostraram o tamanho do problema. Governo e mídias se mobilizaram rapidamente para conter as publicações que incitavam a violência, em alinhamento com as melhores práticas internacionais. O Twitter, no entanto, se recusou, num primeiro momento, a adotar o mecanismo de proteção. Alegou que as publicações não feriam “os termos de uso da empresa”, como se o contrato particular pudesse estar acima da legislação existente.
As big techs preferem a autorregulamentação.
Google, YouTube, Facebook, Instagram, Telegram, TikTok operam
protegidos por algoritmos, não informam quantos usuários têm, quanto faturam e
se esquivam de adotar políticas de combate à desinformação. Limitam-se ao
cumprimento de ações judiciais. Quando as cumprem. O Telegram já foi tirado do
ar recentemente por se recusar a obedecer à Justiça.
A “bancada da desinformação” se mobilizou,
fortemente. São parlamentares que usaram estratégias de fake news, como as
denúncias de fraudes nas urnas e incitação aos ataques na Praça dos Três
Poderes. Inundaram a internet com postagens que alegam que a legislação
representa censura e impedirá a prática religiosa. Defenderão a ilegalidade
como liberdade de expressão.
Google e Telegram abandonaram a discrição
de quem se apresenta como empresa de tecnologia para se valer de seu poder de
mídia para atacar a regulamentação. Conseguiram mais alguns processos, multas,
mas a votação foi adiada. E corremos o risco de ver o projeto ser desfigurado.
Já há alguns jabutis nas árvores. Como a
proposta de que a regulamentação não seja aplicada aos parlamentares. Uma
espécie de “excludente de ilicitude”. Desinformação vinda dos políticos não
poderia gerar o bloqueio de suas contas na internet.
A receita para avançar neste cenário
conflagrado é focar nas questões de consenso, essenciais para uma
regulamentação efetiva, para uma lei em que vale o que está escrito. Nesse
ponto, trata-se de afirmar a decisão da sociedade de regular essas atividades e
a determinação de cobrar seu funcionamento por meio de um organismo
fiscalizador.
A União Europeia saiu na frente e apresenta
o melhor exemplo de como enfrentar o problema. O Digital Services Act define e
regula, enquadra e responsabiliza serviços oferecidos por empresas digitais.
Tem a sabedoria de não pretender resolver com uma única votação uma tarefa tão
complexa. Prevê ações que serão aplicadas ao longo de toda a década. Na
essência, não chega a inventar nada que não exista, mas pode tornar o faroeste
do mundo dos algoritmos um território dentro da lei.
*Luiz Claudio Latgé é jornalista
Nenhum comentário:
Postar um comentário