segunda-feira, 15 de maio de 2023

Demétrio Magnoli - O círculo chileno

O Globo

Esquerda resolveu 'passar o trator', escrevendo um projeto de Constituição à sua imagem e semelhança

O círculo se fechou. Há uma semana, os chilenos deram maioria absoluta à direita na eleição do Conselho Constitucional. O Partido Republicano, de José Antonio Kast, ultraconservador, ficou com 23 das 51 cadeiras. A direita moderada ficou com outras 11. O ciclo iniciado com a vitória da esquerda nas eleições para a Assembleia Constituinte, dois anos atrás, conclui-se na forma de um teorema: a política identitária move o eleitorado para a direita.

As manifestações populares de 2019 e 2020 desaguaram no plebiscito que aprovou a produção de uma nova Constituição, em substituição à Carta herdada da ditadura de Pinochet e várias vezes emendada. Sob o impulso das ruas, que queriam redes ampliadas de proteção social, a esquerda obteve maioria na Constituinte.

A maioria nominal esquerdista da Constituinte não refletia a paisagem política do país. No turno inicial das eleições de novembro de 2021, seis meses após a eleição da Constituinte, o candidato presidencial de esquerda Gabriel Boric, que triunfaria no turno final, obteve apenas 26% dos votos. No mesmo pleito, a direita conquistou 48% das cadeiras na Câmara, batendo largamente a esquerda. Mesmo assim, a esquerda resolveu “passar o trator”, escrevendo um projeto de Constituição à sua imagem e semelhança.

Constituição é o contrato de regras que mantém a unidade da sociedade nacional. Precisa, portanto, refletir um consenso político de longo prazo. A maioria da Constituinte chilena preferiu, porém, replicar na Carta seu programa ideológico completo.

Nasceu, do exercício insano, um monstro de 388 artigos que condensava as mais desvairadas utopias identitárias, ecológicas e sociais. O Chile se tornaria um Estado plurinacional. Os povos indígenas ganhariam “autogoverno”, até “instituições jurisdicionais tradicionais”. A palavra “gênero”, repetida 39 vezes, desdobrava-se na exigência de “paridade de gênero” em todos os órgãos da administração pública, direta ou indireta, e na totalidade das instituições de representação popular.

O projeto deslizava para a faixa do ridículo. Os juízes, bem como as autoridades políticas, ficariam obrigados a tomar decisões amparadas num “enfoque de gênero”. A “Natureza” adquiria o estatuto de sujeito de direitos. Ficariam proibidas “todas as formas de precarização no emprego”, seria garantido o direito geral ao trabalho “de livre escolha” e a seguridade social pública evitaria qualquer “redução dos meios de subsistência” dos cidadãos.

O pleito da Constituinte teve participação de escassos 42% dos eleitores. O plebiscito do projeto constitucional, realizado em setembro de 2022 sob a nova regra do voto obrigatório, contou com 86% de participação — e o rejeitou por uma maioria esmagadora de 62% dos votantes. Os chilenos declaravam-se fartos com os folguedos infantis da esquerda pós-moderna. O pêndulo começava a mover-se no sentido oposto.

Kast inventou seu partido em meados de 2019. O ciclo eleitoral inaugurado com a Constituinte abriu espaço para a difusão nacional das suas ideias, alicerçadas na trindade Pátria, Deus e Família. O Partido Republicano não merece o rótulo de “ultradireita” que a esquerda tenta lhe impingir, pois evita contestar a democracia, a igualdade jurídica e a laicidade estatal. Situa-se no pátio do conservadorismo duro, exibindo-se como interlocutor da centro-direita tradicional. Seu triunfo decorre da rejeição majoritária às políticas identitárias de esquerda.

A indagação política moderna é “como promover o bem-estar dos cidadãos?”. Os identitários a substituíram por outra, que não admite acordos: “Quem somos nós?”. A esquerda pós-moderna oferece a seguinte resposta: “Uma coleção de minorias oprimidas”. A direita dura, liderada por Kast, tem respostas eleitoralmente mais eficazes: “Somos o povo chileno”, “somos patriotas”, “somos cristãos”. A resposta da esquerda enfatiza a diferença, a fragmentação, enquanto a direita apela à igualdade e à unidade.

O deslocamento da política para a esfera das identidades é uma fórmula certa para a vitória dos conservadores. A prova disso está no círculo chileno.

 

2 comentários:

Francisco Rüdiger disse...

Identitarismo (raça, gênero e ancestralidade): a fórmula de conversão da esquerda em direita.

ADEMAR AMANCIO disse...

Na próxima encarnação eu quero ser muulher,apenas isso.