Valor Econômico
Alckmin e Lula são os novos alvos do lobby
da indústria automobilística
No dia 09 de fevereiro de 1957, os jornais
anunciaram “o maior investimento de capitais estrangeiros no Brasil”: a empresa
americana Ford havia apresentado ao governo de Juscelino Kubitschek a intenção
de aplicar US$ 16 milhões (quase US$ 160 milhões atuais, corrigidos pela
inflação nos Estados Unidos) para produzir em São Paulo camionetes e caminhões
F-100, F-350 e F-600.
Embora a Ford já realizasse desde o final
dos anos 1910 a montagem de veículos a partir de peças importadas dos EUA (por
isso chamamos as empresas desse setor de “montadoras”), desta vez o Brasil
poderia se orgulhar de ter uma verdadeira fábrica de automóveis. Havíamos
entrado para o seleto grupo das nações industrializadas, celebrava JK, o
político que prometera fazer o país crescer “cinquenta anos em cinco”.
A obsessão com a fabricação de carros no Brasil justificava-se pelo seu poder de alavancar outros segmentos a montante e a jusante, como a produção de placas de aço, autopeças, vidros, plásticos e toda uma rede de revendedores e assistência técnica. Como nosso mercado consumidor não possuía escala, para que o investimento das empresas estrangeiras se mostrasse viável o governo brasileiro prometeu uma série de incentivos. Entre os benefícios estava um tratamento cambial favorecido para a importação de máquinas e equipamentos.
Esse programa diferenciado para a produção
doméstica de veículos deveria valer por cinco anos. Essa história, contudo,
estava só começando. A vantagem não apenas foi renovada diversas vezes, como os
sucessivos governos criaram muitas outras formas de privilégios para as
montadoras.
Elevadas barreiras à importação de
automóveis garantiram às quatro grandes instaladas no Brasil até o final dos
anos 1980 (Ford, Volkswagen, Chevrolet e Fiat) uma confortável reserva de mercado
que fez Fernando Collor chamar de “carroças” os veículos produzidos aqui.
Collor, porém, recorreu às mesmas montadoras que tanto criticava para firmar
“acordos setoriais” entre os setores público, privado e sindicatos para conter
a hiperinflação. Os dados, no entanto, mostram que o Estado entrou com isenção
de impostos, mas a redução dos preços dos carros ficou apenas no discurso.
Itamar Franco inventou a lenda do “carro
popular”; zerou o IPI dos veículos e assim o Fusquinha ganhou sobrevida. Com o
plano Real de FHC, a farra dos benefícios tributários se multiplicou à medida
em que Estados entraram numa guerra fiscal para atrair a instalação de fábricas
em seus territórios. Regimes automotivos especiais foram criados para facilitar
o intercâmbio de modelos e partes com unidades localizadas no México e na
Argentina.
Quando o metalúrgico forjado nas fábricas
do ABC paulista chegou à Presidência, a postura combativa contra as montadoras
nas greves do final da década de 1980 já era coisa do passado. Fábricas foram
construídas no Nordeste e no Centro-Oeste, longe dos principais mercados
consumidores - distorções econômicas somente justificadas por generosos
incentivos fiscais.
Com Dilma, o lobby da indústria
automobilística foi tão bem-sucedido que a Organização Mundial do Comércio teve
que intervir e condenar o Inovar-Auto como prática discriminatória de comércio
internacional. Temer fez ajustes, e o Rota 2030 prorrogou as vantagens por mais
doze anos.
Apesar de tantos benefícios, em 11 de
janeiro de 2021, a Ford anunciou a decisão de encerrar as atividades no Brasil.
Em nota, a multinacional justificou que a estagnação do mercado doméstico,
materializada em “anos de perdas significativas”, não permitiam vislumbrar “um
futuro sustentável e lucrativo” no Brasil.
A saída da primeira empresa automobilística
a atuar no país é uma evidência do fracasso da estratégia de política
industrial adotada por décadas. Benefícios foram concedidos sem critérios - e
quando havia a exigência de contrapartidas, elas nunca foram cobradas das
empresas.
Quase oitenta anos depois do sonho de JK,
fomentamos uma indústria com excesso de capacidade ociosa e baixo conteúdo
tecnológico. Voltadas para o atendimento do mercado interno ou de nossos
vizinhos sul-americanos, as filiais brasileiras não se transformaram numa base
de exportação integradas às grandes cadeias globais de valor.
O fechamento das fábricas da Ford e os
efeitos da crise provocada pela pandemia, pela falta de semicondutores e pelos
juros altos vêm sendo utilizados como justificativa das montadoras para
pressionar o governo por mais incentivos. O vice-presidente e ministro da
Indústria Geraldo Alckmin parece ser a próxima vítima do lobby da indústria
automobilística.
Sob a desculpa de se combater a
“desindustrialização”, o governo prepara um novo pacote que promete um combo de
incentivos tributários, crédito subsidiado do BNDES, renovação da frota e até
mesmo a volta do carro popular.
Enquanto carros elétricos já são uma
realidade e veículos autônomos e a economia circular norteiam os investimentos
em inovação no mundo, Lula está prestes a insistir na promoção de uma indústria
de tecnologia defasada, ambientalmente ineficiente e que gera muito menos
empregos e efeitos positivos na cadeia produtiva do que na época do Lula
sindicalista.
Como se não bastassem essas incongruências,
a decisão de conceder benefícios fiscais para a indústria automobilística não
faz nenhum sentido neste momento em que Haddad se esforça para cortar “jabutis”
tributários e a reforma de Bernard Appy promete um sistema de impostos mais
justo para todos os bens e serviços.
Passou da hora de o governo brasileiro
deixar de ser refém do lobby da indústria automobilística.
*Bruno Carazza é mestre em economia e doutor em direito, é autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”.
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