segunda-feira, 15 de maio de 2023

Bruno Carazza* - Governo e montadoras, uma história de amor

Valor Econômico

Alckmin e Lula são os novos alvos do lobby da indústria automobilística

No dia 09 de fevereiro de 1957, os jornais anunciaram “o maior investimento de capitais estrangeiros no Brasil”: a empresa americana Ford havia apresentado ao governo de Juscelino Kubitschek a intenção de aplicar US$ 16 milhões (quase US$ 160 milhões atuais, corrigidos pela inflação nos Estados Unidos) para produzir em São Paulo camionetes e caminhões F-100, F-350 e F-600.

Embora a Ford já realizasse desde o final dos anos 1910 a montagem de veículos a partir de peças importadas dos EUA (por isso chamamos as empresas desse setor de “montadoras”), desta vez o Brasil poderia se orgulhar de ter uma verdadeira fábrica de automóveis. Havíamos entrado para o seleto grupo das nações industrializadas, celebrava JK, o político que prometera fazer o país crescer “cinquenta anos em cinco”.

A obsessão com a fabricação de carros no Brasil justificava-se pelo seu poder de alavancar outros segmentos a montante e a jusante, como a produção de placas de aço, autopeças, vidros, plásticos e toda uma rede de revendedores e assistência técnica. Como nosso mercado consumidor não possuía escala, para que o investimento das empresas estrangeiras se mostrasse viável o governo brasileiro prometeu uma série de incentivos. Entre os benefícios estava um tratamento cambial favorecido para a importação de máquinas e equipamentos.

Esse programa diferenciado para a produção doméstica de veículos deveria valer por cinco anos. Essa história, contudo, estava só começando. A vantagem não apenas foi renovada diversas vezes, como os sucessivos governos criaram muitas outras formas de privilégios para as montadoras.

Elevadas barreiras à importação de automóveis garantiram às quatro grandes instaladas no Brasil até o final dos anos 1980 (Ford, Volkswagen, Chevrolet e Fiat) uma confortável reserva de mercado que fez Fernando Collor chamar de “carroças” os veículos produzidos aqui. Collor, porém, recorreu às mesmas montadoras que tanto criticava para firmar “acordos setoriais” entre os setores público, privado e sindicatos para conter a hiperinflação. Os dados, no entanto, mostram que o Estado entrou com isenção de impostos, mas a redução dos preços dos carros ficou apenas no discurso.

Itamar Franco inventou a lenda do “carro popular”; zerou o IPI dos veículos e assim o Fusquinha ganhou sobrevida. Com o plano Real de FHC, a farra dos benefícios tributários se multiplicou à medida em que Estados entraram numa guerra fiscal para atrair a instalação de fábricas em seus territórios. Regimes automotivos especiais foram criados para facilitar o intercâmbio de modelos e partes com unidades localizadas no México e na Argentina.

Quando o metalúrgico forjado nas fábricas do ABC paulista chegou à Presidência, a postura combativa contra as montadoras nas greves do final da década de 1980 já era coisa do passado. Fábricas foram construídas no Nordeste e no Centro-Oeste, longe dos principais mercados consumidores - distorções econômicas somente justificadas por generosos incentivos fiscais.

Com Dilma, o lobby da indústria automobilística foi tão bem-sucedido que a Organização Mundial do Comércio teve que intervir e condenar o Inovar-Auto como prática discriminatória de comércio internacional. Temer fez ajustes, e o Rota 2030 prorrogou as vantagens por mais doze anos.

Apesar de tantos benefícios, em 11 de janeiro de 2021, a Ford anunciou a decisão de encerrar as atividades no Brasil. Em nota, a multinacional justificou que a estagnação do mercado doméstico, materializada em “anos de perdas significativas”, não permitiam vislumbrar “um futuro sustentável e lucrativo” no Brasil.

A saída da primeira empresa automobilística a atuar no país é uma evidência do fracasso da estratégia de política industrial adotada por décadas. Benefícios foram concedidos sem critérios - e quando havia a exigência de contrapartidas, elas nunca foram cobradas das empresas.

Quase oitenta anos depois do sonho de JK, fomentamos uma indústria com excesso de capacidade ociosa e baixo conteúdo tecnológico. Voltadas para o atendimento do mercado interno ou de nossos vizinhos sul-americanos, as filiais brasileiras não se transformaram numa base de exportação integradas às grandes cadeias globais de valor.

O fechamento das fábricas da Ford e os efeitos da crise provocada pela pandemia, pela falta de semicondutores e pelos juros altos vêm sendo utilizados como justificativa das montadoras para pressionar o governo por mais incentivos. O vice-presidente e ministro da Indústria Geraldo Alckmin parece ser a próxima vítima do lobby da indústria automobilística.

Sob a desculpa de se combater a “desindustrialização”, o governo prepara um novo pacote que promete um combo de incentivos tributários, crédito subsidiado do BNDES, renovação da frota e até mesmo a volta do carro popular.

Enquanto carros elétricos já são uma realidade e veículos autônomos e a economia circular norteiam os investimentos em inovação no mundo, Lula está prestes a insistir na promoção de uma indústria de tecnologia defasada, ambientalmente ineficiente e que gera muito menos empregos e efeitos positivos na cadeia produtiva do que na época do Lula sindicalista.

Como se não bastassem essas incongruências, a decisão de conceder benefícios fiscais para a indústria automobilística não faz nenhum sentido neste momento em que Haddad se esforça para cortar “jabutis” tributários e a reforma de Bernard Appy promete um sistema de impostos mais justo para todos os bens e serviços.

Passou da hora de o governo brasileiro deixar de ser refém do lobby da indústria automobilística.

*Bruno Carazza é mestre em economia e doutor em direito, é autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”.

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