Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
O surgimento de “fake news” em nosso
vocabulário político teve por objetivo decantar a palavra mentira original e
nela destacar o que é mais do que uma palavra, uma profissão
“Fake
news” é um refrescamento da palavra “mentira”, prática desde há muito presente
na cultura política brasileira. A palavra inglesa importada já é em si mesma
uma mentira: faz passar por novo e moderno o que é velhíssimo e arcaico.
Mas é algo que aqui existe desde o tempo em
que, oficialmente, o político brasileiro não mentia nem precisava mentir para
mandar. Ele era a personificação do poder e o poder não mente, pois transforma
qualquer mentira em verdade oficial.
O surgimento de “fake news” em nosso vocabulário
político teve por objetivo decantar a palavra mentira original e nela destacar
o que é mais do que uma palavra, uma profissão. A de mentir politicamente para
assegurar resultados políticos tópicos em relação a momentos e demandas
específicas do processo político.
A mentira na política tem sido em nossa história, longe do que parece, expressão de uma novidade associada à decadência da monarquia e da sociedade tradicional e estamental. Com isso, ao advento de um republicanismo inconcluso e falso, porque de cópia, bloqueado no meio do caminho da história política.
Essa decadência criou a necessidade
ideológica do fingimento como recurso de uma verdade superficial numa sociedade
em que a estrutura do poder nunca foi nem tem sido nem tem podido ser propriamente
um instrumento de presença democrática do povo no poder.
Tradicionalmente, o poder se legitimava por
si mesmo. Quando se tornou necessária a coadjuvância do povo, para a forma sem
conteúdo do republicanismo de cópia, e mais que isso, sua cumplicidade, a
mentira ganhou função e até estilo no populismo. Um modo em que o político
finge ser o que acha que o povo quer que ele seja. A política se separa do
político. O fingimento ocupa o poder, que se torna teatral.
Uma expressão dessa mudança histórica foi o
governo recém-terminado e sua característica nova e curiosa: a da necessidade
de fazer do fingimento político também fingimento religioso. Um indício claro
de que o populismo entrou em decadência e faz da religião um meio de revigorar
o que vem se tornando frágil: a dominação política.
A dimensão trágica da mentira no processo
político brasileiro foi a Guerra de Canudos, no sertão da Bahia, em 1896-97. A
recém-proclamada República, no golpe de Estado militar contra o Partido
Republicano, da manhã de 15 de novembro de 1889, tinha forma mas não tinha
conteúdo que lhe correspondesse. O povo brasileiro tornou-se protagonista do
processo político, como suspeito, tratado como inimigo do Exército e do Estado
militarizado. Como povo incapaz de ser cidadão e republicano.
Canudos deu ao Exército o pretexto de que o
povo era antirrepublicano e, portanto inimigo e como tal combatido. O Exército
acreditou numa mentira, propositalmente forjada na mentalidade oligárquica do
sertão e do regime subjacente aos regimes políticos brasileiros.
No sertão do Nordeste, difundira-se nas
últimas décadas do século XIX um movimento religioso protagonizado pelo padre
Ibiapina. Era ele um juiz de direito que se tornara padre e iniciara o
movimento das Casas de Caridade, dedicado a restaurar igrejas e cemitérios, a
ajudar os pobres. Antônio Conselheiro foi um de seus ouvintes que fez do
abandonado arraial de Canudos a cidade santa de Belo Monte. Agregou um
crescente número de seguidores e com eles foi a Monte Santo comprar madeira para
restaurar a igreja do povoado. Pagaram antecipadamente.
Mas o dono do negócio, o fazendeiro Barão
de Jeremoabo, não entregou a mercadoria vendida e paga. Os devotos resolveram,
então, ir buscar sua madeira e o foram em procissão, a bandeira vermelha alçada
do Divino Espírito Santo.
O que indica que os conselheiristas eram
joaquimitas, seguidores das ideias do monge cistercense Gioacchino Da Fiore,
que fizera uma releitura da Bíblia e nela descobrira três testamentos: o do
Pai, o do Filho e o do Espírito Santo. Este último o de uma terceira era de
fartura, justiça e alegria. De fato, até hoje disseminada, a Festa do Divino é
uma celebração comunitária centrada nessa esperança e nesses valores. A figura
simbólica da festa é o Imperador do Divino.
Para não pagar a conta e passar o calote
nos sertanejos, o Barão enviou ao governador da Bahia a falsa informação de que
um movimento monarquista irrompera no sertão de Canudos. A força pública atacou
o grupo e foi derrotada.
O governador repassou a falsa notícia ao Exército,
que fez vários ataques ao reduto do Conselheiro. Matou e prendeu muita gente,
alguns por degola, sofreu derrotas e por fim aniquilou a cidade de pau-a-pique
a tiros de canhão.
Um barão capiau do sertão enganou e usou o
nascente Exército republicano do Brasil com uma simples e trágica mentira
política.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “As duas mortes de Francisca Júlia - A Semana de Arte Moderna antes da semana” (Editora Unesp, 2022).
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