sexta-feira, 12 de maio de 2023

José de Souza Martins* - A mentira na política

Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

O surgimento de “fake news” em nosso vocabulário político teve por objetivo decantar a palavra mentira original e nela destacar o que é mais do que uma palavra, uma profissão

“Fake news” é um refrescamento da palavra “mentira”, prática desde há muito presente na cultura política brasileira. A palavra inglesa importada já é em si mesma uma mentira: faz passar por novo e moderno o que é velhíssimo e arcaico.

Mas é algo que aqui existe desde o tempo em que, oficialmente, o político brasileiro não mentia nem precisava mentir para mandar. Ele era a personificação do poder e o poder não mente, pois transforma qualquer mentira em verdade oficial.

O surgimento de “fake news” em nosso vocabulário político teve por objetivo decantar a palavra mentira original e nela destacar o que é mais do que uma palavra, uma profissão. A de mentir politicamente para assegurar resultados políticos tópicos em relação a momentos e demandas específicas do processo político.

A mentira na política tem sido em nossa história, longe do que parece, expressão de uma novidade associada à decadência da monarquia e da sociedade tradicional e estamental. Com isso, ao advento de um republicanismo inconcluso e falso, porque de cópia, bloqueado no meio do caminho da história política.

Essa decadência criou a necessidade ideológica do fingimento como recurso de uma verdade superficial numa sociedade em que a estrutura do poder nunca foi nem tem sido nem tem podido ser propriamente um instrumento de presença democrática do povo no poder.

Tradicionalmente, o poder se legitimava por si mesmo. Quando se tornou necessária a coadjuvância do povo, para a forma sem conteúdo do republicanismo de cópia, e mais que isso, sua cumplicidade, a mentira ganhou função e até estilo no populismo. Um modo em que o político finge ser o que acha que o povo quer que ele seja. A política se separa do político. O fingimento ocupa o poder, que se torna teatral.

Uma expressão dessa mudança histórica foi o governo recém-terminado e sua característica nova e curiosa: a da necessidade de fazer do fingimento político também fingimento religioso. Um indício claro de que o populismo entrou em decadência e faz da religião um meio de revigorar o que vem se tornando frágil: a dominação política.

A dimensão trágica da mentira no processo político brasileiro foi a Guerra de Canudos, no sertão da Bahia, em 1896-97. A recém-proclamada República, no golpe de Estado militar contra o Partido Republicano, da manhã de 15 de novembro de 1889, tinha forma mas não tinha conteúdo que lhe correspondesse. O povo brasileiro tornou-se protagonista do processo político, como suspeito, tratado como inimigo do Exército e do Estado militarizado. Como povo incapaz de ser cidadão e republicano.

Canudos deu ao Exército o pretexto de que o povo era antirrepublicano e, portanto inimigo e como tal combatido. O Exército acreditou numa mentira, propositalmente forjada na mentalidade oligárquica do sertão e do regime subjacente aos regimes políticos brasileiros.

No sertão do Nordeste, difundira-se nas últimas décadas do século XIX um movimento religioso protagonizado pelo padre Ibiapina. Era ele um juiz de direito que se tornara padre e iniciara o movimento das Casas de Caridade, dedicado a restaurar igrejas e cemitérios, a ajudar os pobres. Antônio Conselheiro foi um de seus ouvintes que fez do abandonado arraial de Canudos a cidade santa de Belo Monte. Agregou um crescente número de seguidores e com eles foi a Monte Santo comprar madeira para restaurar a igreja do povoado. Pagaram antecipadamente.

Mas o dono do negócio, o fazendeiro Barão de Jeremoabo, não entregou a mercadoria vendida e paga. Os devotos resolveram, então, ir buscar sua madeira e o foram em procissão, a bandeira vermelha alçada do Divino Espírito Santo.

O que indica que os conselheiristas eram joaquimitas, seguidores das ideias do monge cistercense Gioacchino Da Fiore, que fizera uma releitura da Bíblia e nela descobrira três testamentos: o do Pai, o do Filho e o do Espírito Santo. Este último o de uma terceira era de fartura, justiça e alegria. De fato, até hoje disseminada, a Festa do Divino é uma celebração comunitária centrada nessa esperança e nesses valores. A figura simbólica da festa é o Imperador do Divino.

Para não pagar a conta e passar o calote nos sertanejos, o Barão enviou ao governador da Bahia a falsa informação de que um movimento monarquista irrompera no sertão de Canudos. A força pública atacou o grupo e foi derrotada.

O governador repassou a falsa notícia ao Exército, que fez vários ataques ao reduto do Conselheiro. Matou e prendeu muita gente, alguns por degola, sofreu derrotas e por fim aniquilou a cidade de pau-a-pique a tiros de canhão.

Um barão capiau do sertão enganou e usou o nascente Exército republicano do Brasil com uma simples e trágica mentira política.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “As duas mortes de Francisca Júlia - A Semana de Arte Moderna antes da semana” (Editora Unesp, 2022).

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