O Estado de S. Paulo
As chances de uma relação produtiva entre
governo e Congresso, dentro dos limites do sistema político-partidário do País,
ainda existem
Um dos temas da análise política hoje é a
formação da base do governo no Congresso. Aliás, esse é um tema permanente em
nossa democracia e já foi objeto de estudo específico, resultando dele o
conceito de presidencialismo de coalizão. Desde quando formulado pelo cientista
político Sérgio Abranches, em 1988, a relação governo com o Congresso já passou
por inúmeras controvérsias, do mensalão ao orçamento secreto.
Na aparência, ao menos, é um problema
insolúvel. O governo precisa formar uma coalizão de partidos para realizar seus
objetivos, dando em troca cargos e recursos.
Um obstáculo para contentar esta coalizão é
o fato de que os partidos não são estruturados em torno de um programa político
claro. Em muitos casos, sobretudo agora, tornaram-se partidos após a fusão de
forças diferentes. Oferecer um cargo a um determinado partido nem sempre
significa alinhamento, porque muitos setores e indivíduos dentro do próprio
partido não se sentem contemplados.
Da mesma forma, a distribuição de recursos por meio de emendas parlamentares é uma tarefa difícil. O orçamento secreto resolveu o problema, mas criou outros muito maiores.
Por meio dele, os deputados eram
contemplados pessoalmente e destinavam o dinheiro com liberdade. O resultado
foi não só uma dispersão perdulária, como também um atentado à Constituição,
pela falta de transparência.
Existe um outro fator importante neste
presidencialismo de coalizão: o fator simbólico, no sentido de que, além de
cargos e dinheiro, os congressistas exigem atenção do próprio presidente. Nos
termos da situação confusa brasileira, o caminho ideal era não somente
sistematizar o encontro com parlamentares, mas também tentar definir um caminho
mais produtivo para a distribuição de cargos e verbas.
Os cargos deveriam ser distribuídos, mas
com uma condição: a de que o novo ocupante tivesse alguma intimidade com o
tema. De um modo geral, esse quesito é desprezado sob o argumento – um pouco
onipotente – de que o quadro político se adapta a qualquer situação.
Da mesma forma, o uso das emendas
parlamentares não deveria ser pulverizado. Se todo esse dinheiro fosse de
alguma forma articulado com os gastos dos programas nacionais do governo, a
eficácia seria muito maior. Neste caso, governo e Congresso investiriam na
mesma direção, conseguindo muito mais qualidade no gasto.
Interessante acentuar que, mesmo em
condições ideais de distribuição de cargos e recursos, além da corte aos
congressistas, o governo tem limites claros. Mesmo com a formação ideal de uma
base, o Congresso não funciona como uma página em branco na qual o governo pode
inscrever qualquer roteiro.
Ninguém mais do que Bolsonaro abriu mão dos
recursos colocando-os, em grande parte, nas mãos dos presidentes da Câmara e do
Senado, por meio do orçamento secreto. No entanto, Bolsonaro jamais conseguiu
avançar sua pauta comportamental no Congresso. Havia uma barreira
intransponível.
Isso não significa que uma pauta
comportamental simetricamente oposta à de Bolsonaro consiga abrir caminho,
sobretudo agora, com a nova composição. Significa apenas que existem limites e
que o Congresso, ainda que não defina com clareza, acaba funcionando como uma
espécie de baliza.
A situação do governo atual parece que pode
esbarrar também em alguns limites. Mesmo distribuindo cargos e recursos, há
temas que se tornam tabus. Um deles é reverter processos como o Marco do
Saneamento ou a privatização da Eletrobras. Aparentemente, os limites impostos
à pauta comportamental de Bolsonaro podem surgir, agora, como limites a
projetos reestatizantes na economia.
Não se sabe claramente qual o peso que os
deputados deram ao conteúdo do decreto sobre o Marco do Saneamento ao
derrotá-lo na Câmara. O que pesou mais: a tendência a fortalecer as estatais ou
o fato de um decreto ter alterado o trabalho de todos os parlamentares?
Ainda há um tempo para decantar essas
decisões de uma legislatura que apenas começa. Naturalmente que a forma de
decreto teve um peso na rejeição. Mas o conteúdo estatizante, a julgar pelo
resultados das urnas, pode viver o mesmo drama que a pauta comportamental de
Bolsonaro viveu no passado.
Ainda é muito cedo para cravar uma
interpretação sobre o futuro. As dificuldades de trabalhar com os partidos
tornaram-se mais ásperas depois que alguns deles se fundiram. O costume do
orçamento secreto, no qual cada um usava o dinheiro das emendas como queria,
ainda é uma herança maldita.
O que parece, no entanto, mais promissor é
exatamente o leque dos grandes projetos econômicos, como o arcabouço fiscal e a
reforma tributária. Neste campo, pode haver algumas divergências, mas o impulso
geral é o de resolver logo para que o País volte a crescer.
As chances de uma relação produtiva entre
governo e Congresso, dentro dos limites do sistema político-partidário do País,
ainda existem. Caberá ao governo localizar exatamente onde é possível avançar e
onde quebrar a cabeça representa apenas um desgaste inútil. Apesar de muito
confusa, existe uma correlação de forças e não se deve nunca deixar de analisa-la
com cuidado.
Um comentário:
''Presidencialismo de confusão'',gostei da definição.
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