Com a dupla derrota da extrema-direita, em outubro e janeiro, além de se mudar o governo, os executores dos atos golpistas foram logo presos, estão sendo agora processados, com agilidade e rigor, pelo poder constitucionalmente autorizado a isso. O Judiciário tem agido em cooperação com órgãos da segurança pública, que também se dedicam, diuturnamente, a identificar os autores intelectuais e financiadores dos atos para também processá-los, conforme a lei. As corporações militares, tidas e havidas, na quadra mais recente da vida nacional (e nem sempre de modo justo) como potenciais fontes de desestabilização democrática, estão pacificadas e submetidas ao poder civil, sem prejuízo, como se vê, de indiciamento pessoal de militares. As instituições republicanas retomam sua normalidade e a rigor não se pode mais falar de conjuntura de risco à democracia. Ficaram abertos, a princípio, caminhos para que a política democrática cuide do que mais interessa, as avarias no seu edifício e na sua dinâmica institucional, para que tenham passagem as pautas econômicas, sociais e ambientais, em nome das quais se negou, à extrema-direita, a continuidade de sua experiência no governo.
Em contraponto à positividade desses fatos,
o clima político do país, que se supunha desanuviado por um processo
democrático benigno, voltou a ficar muito tensionado por uma pauta judicial e
policial. Caminhamos a passos largos
para um ambiente semelhante aos dos tempos da Operação Lava-jato. Os
atores de ontem cumprem papeis invertidos, sob a perplexidade de quem quer
aposentar aquele script. A
pergunta a ser respondida é por que a sensação de excepcionalidade sobrevive a
outubro e janeiro.
Faz parte da prorrogação de guerra ferida com
inversão de papeis um discurso insólito do senador Hamilton Mourão, em “defesa
da democracia” contra “ataques” do que ele e aparteantes simpáticos chamam de instrumentalização
governamental da Justiça para “vingança”, ou mesmo de “ditadura”, a qual
estaria patenteada na cassação do mandato do deputado Deltan Dallagnol, por
decisão do TSE.
O discurso do ex-general, hoje senador,
pode ser lido pelo seguinte ângulo: desde o imediato pós 8 de janeiro, com a virada
de página do perigo de golpe, a ideia da democracia reforçou-se mais
solidamente. Por isso, ninguém pode hoje se posicionar sobre temas institucionais
sem invocar seu nome, mesmo que o faça blasfemando, como no caso de Mourão. Mas
essa leitura justificadamente otimista não impede que se repare em riscos que
uma recidiva do lavajatismo com sinal trocado representa, no sentido de dar
plateia a pregações da extrema-direita e, no limite, conferir, aos olhos da
população, alguma plausibilidade ao seu discurso, por mais irracional e
inverídico que ele, de fato, seja. Mais que as palavras destituídas de
veracidade intrínseca proferidas por um senador de flagrante vínculo com a
extrema-direita, importa reparar, por exemplo, no apoio que recebeu, em
plenário, de um senador da direita tradicional como Esperidião Amin. Dutos
entre distintas direitas podem ainda hoje ser flagrados, tanto no plenário do
Senado como num evento de entrega de títulos de posse em São Paulo, na Arena
Corinthians, onde o governador Tarciso de Freitas e o deputado Eduardo Bolsonaro
trocam elogios em público e com eles se sintoniza, ainda que mais passivamente,
o prefeito paulistano, Ricardo Nunes.
Será relevante observar se tais convergências
no interior das direitas – um campo largo, hoje submetido a uma dinâmica
centrífuga - são resíduos contrafactuais e pontuais de um processo mais geral
de lento esgarçamento, ou se podem estar relacionadas, de algum modo, à repercussão
pública da recidiva jurídico-policial que invade ambientes das várias mídias e
da política brasileira nas últimas semanas.
Palavras e obras no âmbito de cada um dos
três poderes da República podem contribuir para adubar ou desabilitar o terreno
onde arautos de salvacionismos tentam replantar sementes ideológicas de sua
guerra santa contra a legitimidade da política como campo privilegiado de
solução de conflitos. No âmbito do
Executivo, o presidente e seus ministros negam espaço à recidiva se admitem
compartilhar o poder e adotam o diálogo e a autocontenção como métodos de
relação com os demais poderes, inclusive construindo pautas legislativas comuns,
como se tem feito no caso do arcabouço fiscal; e fazem o oposto se desafiam amplos
consensos consolidados no congresso, para tentar passar pautas programáticas do
seu campo político, ou mesmo para apenas agitá-las como propaganda. No âmbito
do Legislativo trabalha-se para desabilitar a guerra santa se lideranças desse
poder admitem se entender por um novo padrão estável e razoável de
relacionamento com os demais poderes, mas operam em sentido oposto se almejam
tornar perenes poderes assimétricos que exerceram por uma situação política
excepcional, vivida durante o ciclo político anterior. Entre mantê-los e voltar
ao status quo anterior há mediações possíveis. Buscá-las permanentemente
será um forte indicador de normalização democrática.
Por não ter entre as suas prerrogativas
participar diretamente da atividade governativa, o Poder Judiciário nem por
isso está dispensado de compreender a escolha entre adubar ou desabilitar o
terreno em que podem ser plantadas as sementes da recidiva aqui comentada. Ao
contrário, é justamente dele - a quem cabe a intransferível tarefa de dirimir,
à luz da Constituição, eventuais conflitos entre os poderes governativos e
entre esses e seus governados - que se espera um trabalho intermitente para
desativar as minas que podem levar o país a situações-limite, como ocorreu
algumas vezes durante os últimos anos.
A postura do Poder Judiciário é, aos olhos
dos cidadãos, um efetivo termômetro que informa sobre se há normalidade ou
alguma enfermidade na vida institucional do país. Quanto mais convencional for
o seu agir, mais sensação de segurança e tranquilidade comunicará. Se age no
limite da excepcionalidade sinaliza febre alta e abre uma imediata busca de
remédios que, numa sociedade complexa e conflitiva, dificilmente podem ser prescritos
através de consenso.
Nesse sentido é preocupante que mesmo após o
8 de janeiro e seus desdobramentos benignos, continuem saindo, de palavras e
atos de tribunais superiores - ou de altos magistrados que falam por eles - mensagens
na direção de que o país prossegue atolado numa situação emergencial que
justifica pesar a mão da Justiça, para além do que uma normalidade requer. Saímos
de um precipício e entramos num beco? É preciso não deixar a opinião púbica em
dúvida sobre se os responsáveis por conspirações golpistas ou por excessos
arbitrários no âmbito da Lava-Jato estão respondendo judicialmente sobre
um passado ou se seus poderes de produzir fogo são coisa do presente. Diante de
um discurso de extrema-direita que afirma estar a democracia sob ataque, vamos
reagir mostrando sua falta de veracidade ou concordar com ele sobre o estado de
guerra apenas rebatendo as afirmações sobre quem é agressor e agredido? No novo
patamar democrático em que estamos, cabe ao Judiciário ser o primeiro a dizer
que está sob seu sereno controle uma situação que a polarização política
insiste em pintar como agonística. Que embora ainda haja fios desencapados, no
governo e na oposição, ao menos as páginas do golpismo e do lavajatismo foram,
de fato, viradas, ao serem privadas de condições objetivas de prosseguir. Isso
é importante para que não se veja na cerimônia pública da Arena Corinthians um
sinal de adesão do governador a veleidades golpistas da extrema-direita e sim uma
evidência de que, no novo contexto, não resta objetivamente a um político como
Eduardo Bolsonaro senão a disputa política por votos, caso a Justiça mantenha
seus direitos. Nessa hipótese invertem-se os papeis e o governador, não a extrema-direita,
é polo político. Objetiva e subjetivamente esse ponto é muito relevante.
É claro que nada, ainda mais numa
democracia, é definitivo. Por isso é preciso ter cuidado ao apontar extrapolações
indevidas em atitudes do Judiciário. As situações variam e precisam ser
analisadas caso a caso, não por casuísmo, mas para evitar generalizações
estigmatizantes. É inaceitável que se cogite reverter possíveis extrapolações "enquadrando"
o Judiciário de modo ainda mais extrapolado, como quer o senador citado, que
propõe ao presidente do Congresso “interditar” a cassação judicial do mandato
do seu amigo deputado. É querer tratar covid com cloroquina. A crítica democrática
a extrapolações precisa ser dosada, sem aderir à narrativa da extrema-direita
de que têm sido a regra. Se o caso da cassação do mandato é discutível e se se poderia
adotar tratamento menos duro, o mesmo não vale para o rigor usado com os atores
dos atos de 8 de janeiro. Não há como fazer disso tudo um balaio.
Extrapolações podem ser melhor criticadas por
um discurso positivo. Em vez de corroborar o diagnóstico de que a democracia
está se enfraquecendo, compreender que ela ainda convalesce, mas que já avançou
o bastante na recuperação para se poder passar de intervenções cirúrgicas a
tratamento conservador. Em nenhum dos três Poderes estamos precisando de xerifes,
potentados ou guias.
Com esse sentido tem havido várias
manifestações na imprensa, partidas de articulistas de variadas inclinações
políticas, como Merval Pereira, Malu Gaspar e Maria Cristina Fernandes. Claro
que não há aí (nem há motivo para haver) protesto contra um suposto
"estado de exceção", cuja existência povoa mentes terraplanistas e
enche bocas apocalípticas da extrema-direita. Mas essa decisão do TSE pela
cassação do deputado e várias decisões recentes do ministro Alexandre Moraes,
do STF, têm "batido fofo" em ambientes de bom senso democrático e
penso que não ajudam a fortalecer nem o Poder Judiciário nem o espaço pessoal de
Moraes dentro dele. A tendência é ocorrer algo bem diverso. Alexandre Moraes
está se colocando na berlinda e é precipitado concluir que a colegialidade do
STF foi anulada. As crescentes críticas a atos específicos de Moraes trabalham
a favor de que ela se manifeste.
Refiro-me a um ministro em particular, mas
sem intenção de fulanizar um problema mais complexo. É que seu protagonismo
pessoal tem estimulado a proliferação de um modus operandi. Penso que é
sobre esse protagonismo que a moderação colegiada precisa atuar. O exemplo vem
de cima. Pontuo ainda que não é bom caminho o Judiciário desejar ser popular ou
assumir para si um papel político, no sentido estrito. Talvez seja esse um
ponto sobre o qual devamos nos debruçar mais e melhor.
Pedir moderação tendo em conta o tratamento
dispensado a Dallagnol não significa de modo algum esquecer o que ele, Sergio
Moro e outros fizeram de arbitrário e ilegal durante a ilusória República de
Curitiba que essa fração da Lava-jato julgava existir. Mas creio que para virarmos de fato essa e
outras páginas negativas, é preciso abrir mão das pretensões de punição absoluta
e de estigmatização eterna. Na política, o perdão – no sentido que lhe atribuiu
Hannah Arendt - não supõe esquecimento, mas é o modo de permitir um recomeço.
Sem ele ficaremos girando em torno do mesmo eixo de duas pontas. Lembram da lei
da anistia, que parte da esquerda combate e ainda quer reverter? Ela foi um
desses recomeços regenerativos. O raciocínio positivamente pragmático que deve valer
hoje para o que o PT e seus aliados fizeram em governos passados precisa valer
também para a obra controversa da Lava-Jato.
*Cientista político e professor da UFBa.
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