terça-feira, 23 de maio de 2023

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Crédito deverá continuar apertado para as empresas

Valor Econômico

Houve uma redução na demanda de recursos para investimentos e subiu a busca por capital de giro

A economia surpreendeu no início do ano. Puxado pela agropecuária, o Índice de Atividade do Banco Central (IBC-Br) avançou 2,41% no primeiro trimestre, a terceira maior variação da série histórica, e já está animando previsões mais positivas para o ano. Na contramão, as empresas enfrentam cenário financeiro negativo, com o alto custo dos empréstimos e o mercado de capitais travado, comparável a períodos críticos de crise, como na freada brusca registrada no início da pandemia e na recessão de 2015 e 2016, segundo números levantados pelo Centro de Estudos de Mercado de Capitais da Fipe (Cemec-Fipe).

A captação líquida das empresas foi de R$ 37,092 bilhões na média móvel do primeiro trimestre. Foram seis meses seguidos de queda, acumulada em 84,1% a partir do pico de setembro, levando o número para o menor nível desde março de 2020, informa o Cemec-Fipe. O recuo é puxado pelas emissões de dívidas domésticas, devido à retração do mercado de capitais. Mas o crédito bancário não está melhor e caiu ao patamar mais baixo da série iniciada em 2016.

Um novo indicador desenvolvido pelo BTG Pactual também constata que o acesso ao crédito tanto por parte de empresas quanto pelas famílias está tão difícil quanto na crise de 2015, quando o PIB caiu 3,6%, ou no auge da pandemia. O índice utiliza 107 séries de dados como crédito bancário, crédito privado, fundos de investimento, percepção de risco, juros internacionais e até cotações de fertilizantes.

A situação do mercado de capitais é das mais críticas. Em abril, as operações somaram R$ 14,9 bilhões, 41,4% a menos do que em março, acumulando R$ 82,6 bilhões nos primeiros quatro meses do ano, com queda de 40,5% na comparação com o mesmo período de 2022. Não há abertura de capital desde o recorde de 2021, quando houve 45 ofertas. Várias empresas engavetaram os planos diante da retração do investidor estrangeiro, que chega a ficar com metade de muitas ofertas e agora está atraído pela alta dos juros internacionais. Neste ano apenas há algumas ofertas subsequentes, como as duas realizadas em abril.

Os papéis que mais espaço têm conseguido no mercado são as debêntures e muitos têm tido como destino cobrir buracos. Do total colocado neste ano, segundo a Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima), 32,1% destinaram-se compor o capital de giro, e 31,6% a refinanciamento de passivo. Muitas operações são encarteiradas pelos próprios bancos que intermediaram a colocação. O prazo de emissão encurtou, com 27,8% com até três anos, 12,1% a mais do que no mesmo período do ano anterior, e 36,1% com quatro a seis anos, 11,5% a menos na mesma comparação.

A situação dos empréstimos também deixa a desejar. O saldo do crédito livre encolheu 0,5% no primeiro trimestre e as novas concessões despencaram 7,9%. No caso das pessoas jurídicas, os percentuais são ainda maiores, de 3,3% e 11,3%, respectivamente. Análise feita pelo Valor (19/5) mostra que a retração ocorreu inclusive nos grandes bancos. O Banco Central reconheceu o problema e notou que as empresas recorrem ao próprio caixa sempre que possível e evitam buscar crédito no sistema financeiro. Houve uma redução na demanda de recursos para investimentos e subiu a busca por capital de giro.

As taxas de juros elevadas certamente influenciam no quadro. Não há sinais de que recuarão no curtíssimo prazo. Há ainda uma indefinição em relação ao novo governo e às regras fiscais, em relação à economia e ao cenário internacional. Não fosse todo esse quadro indicando cautela, houve a crise da Americanas, que entrou em recuperação judicial após revelar em janeiro a bomba ainda inexplicada de “inconsistências contábeis” de R$ 20 bilhões em operações de risco sacado.

Os problemas de crédito geralmente começam pelas empresas pequenas e médias. Desta vez, outros grandes nomes do setor empresarial como Light, Oi, Grupo Petrópolis, CVC, Renner, Tok&Stok, entre outros, causaram preocupação e contribuíram para a retração de bancos e investidores. Somente os debenturistas da Americanas detinham quase R$ 10 bilhões. Estima-se que há 26 fundos de crédito com cerca de 3 milhões de cotistas que tiveram perdas com a desvalorização dos títulos da Light. Foram atingidos principalmente fundos de crédito privado. Mas há nesse bolo inclusive fundos DI, cujo retorno deveria acompanhar a taxa do CDI, mas tiveram o resultado comprometido porque podem aplicar uma parcela do patrimônio em títulos de crédito.

Em consequência, os fundos de investimento acumulam saques de quase R$ 118 bilhões nos primeiros quatro meses do ano, dos quais R$ 47,5 bilhões nas carteiras de renda fixa. Em todo o ano passado os saques somaram R$ 130 bilhões.

O quadro vai comprometer a evolução da economia neste ano, que não deverá sustentar os números vistosos do primeiro trimestre. Mesmo que o Banco Central reduza os juros no segundo semestre, como se prevê, o ritmo deverá ser lento, com efeito defasado ao longo do tempo. Como sinaliza o Cemec-Fipe, as condições financeiras das empresas deverão continuar difíceis nos próximos meses.

Reunião do G7 trouxe revés para diplomacia lulista

O Globo

Líderes que saudavam Lula como alternativa a Bolsonaro já não o encaram com a mesma deferência

A viagem do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao Japão para participar como convidado do encontro do G7, grupo que reúne as sete maiores economias democráticas, foi um exemplo pedagógico das limitações da política externa brasileira. A presença surpresa do presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, concentrou as atenções. Lula, que meses atrás acalentava o plano de negociar a paz entre Rússia e Ucrânia, nem conseguiu uma reunião bilateral com Zelensky. Até o presidente americano, Joe Biden, evitou um encontro a dois com Lula.

Lula declarou não ter ido a Hiroshima para “discutir a guerra da Ucrânia”. Ele pode participar de reuniões internacionais com os objetivos que julgar melhor para defender os interesses brasileiros, mas não pode ignorar a realidade. As potências ocidentais que saudaram sua chegada ao poder como um vento benfazejo depois do furacão Jair Bolsonaro já não parecem encará-lo com a mesma deferência.

O G7 voltou a ganhar relevo depois da invasão da Ucrânia pela Rússia. Foi o fórum em que as potências ocidentais formularam respostas coordenadas de apoio aos agredidos e de sanção aos agressores. Chegar ao encontro sem querer discutir a guerra na Ucrânia é, no mínimo, ingenuidade.

Um dos objetivos de Zelensky ao viajar de surpresa para Hiroshima era conversar com o líder indiano Narendra Modi e com Lula. Índia e Brasil têm dado ouvidos à Rússia, seguindo a lógica de uma política externa sem alinhamento automático com Estados Unidos (pró-Ucrânia) ou China (pró-Rússia). Para os ucranianos, a aproximação dos dois países era uma tentativa de ganhar apoio entre os emergentes.

No final, Zelensky encontrou Modi, mas não Lula. De acordo como o Itamaraty, por horários incompatíveis. É natural que o governo brasileiro tenha feito pouco esforço para viabilizar a reunião. E o fato de Zelensky não ter mudado sua programação demonstra que, embora desejável, o apoio do Brasil é dispensável. Tudo somado, fica evidente que os planos de Lula para assumir papel de destaque numa eventual negociação de paz são pura fantasia. Lula volta de Hiroshima menor do que chegou. Não é visto mais como “o cara”, na expressão usada pelo ex-presidente Barack Obama para definir sua importância nas reuniões internacionais.

É uma pena, pois o Brasil dispõe de uma agenda produtiva, capaz de aumentar seu protagonismo global. Na sessão de trabalho do G7, quando falou de mudanças climáticas, Lula provocou reações positivas. A proteção ao meio ambiente foi tema central de pelo menos três encontros bilaterais: com o australiano Anthony Albanese, o indonésio Joko Widodo e o canadense Justin Trudeau. Lula também tentou manter vivo um dos temas prediletos da diplomacia brasileira: a necessidade de reforma do Conselho de Segurança da ONU. Como em todas as outras vezes em que o assunto foi levantado, o resultado foi inócuo.

É evidente que o mundo viu com alívio a vitória de Lula sobre Bolsonaro. Sua diplomacia não alinhada pode fazer sentido para uma potência regional como o Brasil. A melhor forma de pô-la em prática, contudo, não é repetir os erros de Bolsonaro em relação à guerra na Ucrânia ou dar declarações sobre extração de petróleo na foz do Amazonas em desafio a sua própria agência ambiental. Desse jeito, os líderes globais questionarão se a Presidência brasileira mudou tanto assim.

Atos racistas em estádios de futebol não podem ser tolerados em nenhum país

O Globo

Leniência da Liga Espanhola com agressão contra Vini Jr. revela dificuldade de combater a chaga

O futebol foi o que de menos importante aconteceu na partida entre Real Madrid e Valencia no último domingo. As ofensas racistas dirigidas em coro ao jogador brasileiro Vinícius Jr., do Real Madrid, roubaram o protagonismo do espetáculo. O episódio — décimo primeiro do tipo sofrido por Vini Jr. em menos de dois anos — já seria condenável por si só. Tornou-se pior pela leniência com que foi tratado pela Liga Espanhola (La Liga). Um péssimo exemplo para o mundo.

Quem esperava ver futebol assistiu a um festival de horrores. No segundo tempo da partida, os torcedores do Valencia começaram a insultar Vini Jr. aos gritos de “mono” (macaco). O jogo ficou paralisado por oito minutos. Quando foi retomado, as ofensas prosseguiram. Abalado, Vini Jr. acabou expulso no fim da partida, quando uma confusão tomou conta do gramado. Inicialmente a súmula da partida nem fazia referência ao racismo no estádio, como se fosse possível ignorá-lo. Diante da reação, foi feito um adendo. A hesitação mostra a dificuldade de reprimir esse comportamento odioso, apesar das orientações da Fifa.

As ofensas racistas tiveram enorme repercussão. Clubes, federações, atletas de vários países manifestaram solidariedade a Vini. O presidente da Fifa, Gianni Infantino, pediu mais rigor aos países e às ligas. O caso foi tão escandaloso que despertou no governo Lula a ideia inusitada de usar o Código Penal para aplicar a lei brasileira no exterior.

O Valencia anunciou que banirá para sempre do estádio os torcedores acusados de racismo. Mas a reação da Liga Espanhola foi tíbia. Embora ela tenha anunciado que investigará o caso, não convence, uma vez que o problema tem se repetido com frequência. O técnico do Real Madrid, Carlo Ancelotti, não poupou críticas: “Quando um estádio grita ‘mono’ a um jogador e o treinador pensa em tirar o jogador por isso, é sinal de que há algo errado acontecendo nessa liga”.

Numa inversão perversa dos fatos, o presidente da Liga Espanhola, Javier Tebas, preferiu criticar Vini Jr., transformando vítima em culpado. Disse que ele não compareceu às reuniões marcadas para discutir o racismo na liga. “Antes de criticar e insultar La Liga é necessário se informar adequadamente”, afirmou.

Esse não é um problema só da Espanha. Combater atitudes racistas nos estádios é um desafio no mundo inteiro. Hoje já existe uma conscientização maior. Em 2020, numa decisão histórica durante partida entre PSG e Istanbul Basaksehir pela Liga dos Campeões, atletas dos dois times abandonaram o gramado do Parque dos Príncipes depois que um integrante da comissão técnica do clube turco sofreu ofensa racista de um árbitro. O enfrentamento tem de ser permanente, como mostram os sucessivos episódios em diferentes países, incluindo o Brasil. Atos racistas não podem ser ignorados ou tolerados, sob o risco de essa chaga se perpetuar em cenas lastimáveis.

G7 em transição

Folha de S. Paulo

Encontro no Japão atestou mudança no cenário global que Lula demorou a entender

Da segunda metade dos anos 1990 até meados da década passada, a Rússia desfilava como ator assíduo nos encontros da elite mundial, e a China recebia chancelas de democracias ricas para participar com isonomia dos negócios globais.

As preocupações com a segurança internacional concentravam-se nas ameaças terroristas, e mal passavam de uma franja ruidosa os movimentos extremistas e neopopulistas nas nações democráticas.

Esse cenário mudou. O expansionismo russo abriu um cisma entre o Kremlin e as democracias do hemisfério norte, que agora tentam apartar a China da vanguarda tecnológica enquanto enfrentam robustas forças políticas domésticas hostis aos princípios liberais.

Voltou a reclamar atenção o estrago planetário que nações armadas até os dentes com ogivas e mísseis nucleares poderiam provocar.

Nesse contexto deve ser entendido o encontro de cúpula do G7 (EUA, Alemanha, Reino Unido, França, Itália, Japão e Canadá), ocorrido neste fim de semana em Hiroshima, que teve o Brasil entre os convidados extraordinários.

A invasão russa da Ucrânia e as preocupações com a saliência econômica e geoestratégica chinesa ressaltam-se no extenso documento final divulgado pelo grupo.

No primeiro caso, a mensagem foi a de que as potências democráticas apoiarão a Ucrânia o quanto for necessário. No segundo, alertas sobre movimentações de Pequim no Mar do Sul da China, o clamor por uma solução pacífica em Taiwan e a orientação para reduzir a dependência econômica do gigante asiático completaram o recado.

Se o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se viu deslocado dos eixos das conversas na cidade japonesa, foi por não ter compreendido essa transformação geopolítica a tempo de evitar dizer e fazer as bobagens que cometeu na campanha e no início do governo.

A retórica presidencial, ao por exemplo descrever a agressão russa como violação territorial da Ucrânia, pareceu desta vez mais ajustada. É essa qualificação que a Carta de 1988 inspira quando elenca a autodeterminação dos povos e a não intervenção como bases das relações internacionais do Brasil.

As trapalhadas do passado, no entanto, dificultam o credenciamento brasileiro como um ator importante no encaminhamento da paz. A bem da verdade, uma mediação brasileira de uma guerra que se passa no leste da Europa seria improvável em qualquer hipótese.

Até pela sua dilatada distância geográfica e política do teatro das operações, o Brasil pode dar-se ao luxo de errar sem maiores consequências nesse caso. O mais importante é o governo Lula aproveitar o episódio para livrar-se de concepções diplomáticas ultrapassadas.

Racistas x futebol

Folha de S. Paulo

Dirigentes não deveriam esperar o Estado para banir atos criminosos dos estádios

O brasileiro Vinicius Junior, jogador do Real Madrid, voltou a ser alvo de ofensas de cunho racial em um estádio de futebol da Espanha. Desta vez, espera-se que a comoção em torno do episódio vergonhoso gere consequências mais palpáveis.

Vini Jr., como é conhecido, foi hostilizado por torcedores do adversário Valencia, que, aos gritos, o chamavam de "macaco" —a ponto de o locutor do estádio pedir que os insultos parassem. O brasileiro denunciou um dos agressores ao juiz da partida e, em seguida, acabou sendo expulso após uma briga entre os atletas em campo.

Um levantamento publicado pela BBC Brasil contou 10 casos do tipo contra o jogador do Real Madrid desde 2021, dos quais 6 neste ano.

Para além da torpeza nos estádios, em janeiro, antes de um embate contra o arquirrival Atlético de Madrid, um boneco negro com o uniforme de Vini foi pendurado pelo pescoço na capital espanhola.

Tratando-se de uma estrela global do esporte, é natural que haja maior repercussão em torno de tais episódios —que nem de longe são raros nos diversos torneios europeus, os mais nobres do futebol atual e assistidos em todo o mundo. A resposta a essas infâmias, porém, não tem ido muito além da repulsa da opinião pública.

Há leis nacionais, obviamente, que criminalizam diferentes manifestações de racismo. Existem também regulamentos esportivos que permitem punir condutas inaceitáveis. O Código Disciplinar da Fifa, para citar só uma referência, busca coibir discriminação em razão de cor, etnia, origem social, gênero, orientação sexual etc.

Os organizadores e atores do futebol não deveriam aguardar a ação das autoridades de Estado para tomar providências. É salutar, nesse sentido, que o Valencia tenha anunciado que já começou a identificar os energúmenos responsáveis pelas ofensas a Vini e que pretende proibir a entrada deles em seu estádio.

É fato conhecido que há quem frequente as arenas para dar vazão a seus preconceitos e sua agressividade, numa ameaça para a coletividade. A Inglaterra, que hoje abriga o campeonato mais valorizado do planeta, conduziu nas últimas décadas uma política rigorosa, nas esferas pública e privada, para banir a violência de torcedores.

Guardadas as proporções, o exemplo deveria inspirar poder público, clubes e dirigentes a abandonarem a negligência covarde diante de atos criminosos.

Meritório ou não, gasto é gasto

O Estado de S. Paulo

Reafirmando conceitos básicos de política fiscal, técnicos das consultorias da Câmara rejeitam exceções ao limite de gastos e manobras que possam comprometer integridade do arcabouço

A Consultoria Legislativa e a Consultoria de Orçamento da Câmara dos Deputados divulgaram uma nota técnica que elaboraram em conjunto para subsidiar as mudanças que Cláudio Cajado (PP-BA), relator da proposta que cria o novo arcabouço fiscal, propôs ao texto enviado pelo governo. No parecer que deve ser votado nesta semana, o relator retirou da lista de exceções ao limite de gastos itens como o piso da enfermagem, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), aportes em estatais não financeiras e a ajuda federal às forças de segurança do Distrito Federal.

Como era de esperar, as alterações foram bombardeadas pelos grupos diretamente atingidos pelas mudanças, que trabalham para revertê-las. Para parlamentares do PT, o relatório poderia amarrar as ações do governo. Para a bancada da Educação, colocar o Fundeb sob o alcance do arcabouço seria uma demonstração de insensibilidade com o magistério. Militares, por sua vez, querem assegurar aportes às empresas vinculadas à Defesa.

Sem questionar ou diminuir a importância de cada área, os técnicos das consultorias da Câmara reafirmam, na nota conjunta, conceitos básicos sobre a área fiscal, como a obrigatoriedade de que toda receita e toda despesa primária sejam computadas na apuração da meta do resultado primário. Tratase de um conceito fundamental para guiar não apenas as escolhas do Legislativo às vésperas de o arcabouço entrar na pauta de votações, mas também a elaboração do Orçamento Geral da União e as próprias escolhas do País no passado, no presente e no futuro.

“A integridade da regra do teto exige que todas as despesas com impacto primário estejam submetidas ao limite de crescimento das despesas primárias, o que é compatível com o propósito da norma que é o de controlar as despesas e conter a trajetória ascendente da dívida pública”, afirma a nota. “Tampouco é critério de exclusão do limite o mérito ou a relevância de uma despesa. Tanto é assim que todas as despesas com saúde e educação, por exemplo, obrigatórias ou discricionárias, encontram-se submetidas ao teto.”

Pode parecer óbvio, mas não é. Essa prática, afinal, explica em parte o fracasso do teto de gastos. A rigidez do dispositivo pressupunha a realização de reformas para rever gastos estruturais. Como elas não foram realizadas, gastos como o piso do Auxílio Brasil e o pagamento dos precatórios foram tratados como excepcionais. E, de exceção em exceção, o dispositivo foi perdendo toda a credibilidade ao longo de sua curta existência.

Quando uma área recebe tratamento especial, todas se mobilizam para obter o mesmo privilégio. Para os consultores da Câmara, quaisquer exceções ao arcabouço, quando e se existirem, “devem necessariamente possuir um fundamento lógico, baseado em critérios estritos do ponto de vista fiscal”.

É o caso de receitas arrecadadas pela União, mas que pertencem a outros entes, como as transferências para Estados e municípios; gastos imprevisíveis, decorrentes de guerra ou calamidade pública; e dispêndios sazonais, como os da Justiça Eleitoral. Evidentemente, não era o caso do eleitoreiro piso do Auxílio Brasil nem do “meteoro” dos precatórios – e também não é o caso dos pisos dos professores, da enfermagem, dos policiais do Distrito Federal ou dos aportes nas empresas estatais.

Como alertam os consultores, todas as despesas, independentemente de seu caráter e relevância, “integram o Orçamento da União e têm impacto primário como qualquer outra, tanto que seu crescimento contribuiu para resultados fiscais desfavoráveis”. Não há qualquer julgamento moral nesse entendimento, mas o simples reconhecimento de princípios fiscais que valem para todo governo e qualquer país.

Um arcabouço fiscal digno do nome deve ter o poder de conter todas as despesas do governo, sem exceções. Submeter todas elas aos limites do mecanismo, mesmo as rubricas politicamente sensíveis, seria a maior prova da disposição do Executivo para levar o dispositivo realmente a sério.

O simbolismo de um chá de cadeira

O Estado de S. Paulo

Ao faltar a encontro com Lula no G7, Zelenski sugere que, por ora, não considera o Brasil confiável para mediar conflito com a Rússia; para EUA e Europa, este não é o momento para paz

Se algo sobressaiu da participação do presidente Lula da Silva na reunião de cúpula do G7, em Hiroshima, foi o fato de não ter se encontrado com o ucraniano Volodmir Zelenski. Esse episódio reforçou a opção do Brasil pela neutralidade diante do conflito entre Rússia e Ucrânia e pela criação de um grupo para iniciar a mediação de um acordo de paz. A questão de fundo exposta em Hiroshima é se vale a pena o País prosseguir nesse caminho, que inevitavelmente o aproxima de Moscou, por mais que Lula mencione o sofrimento dos civis ucranianos castigados pela guerra.

Para os Estados Unidos e a Europa Ocidental, este não é o momento para conversas sobre paz. A janela se abrirá somente quando os soldados russos forem empurrados fora do território ucraniano, graças, sobretudo, ao armamento fornecido pelos integrantes da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Os riscos dessa estratégia estão calculados – no limite, o risco de Vladimir Putin responder à derrota nos campos de batalha acionando o arsenal nuclear.

Lula discorda dessa estratégia. Em sua vez de falar no G7, criticou a Rússia, mas insistiu na articulação de um processo de paz. Fora do púlpito, depois de dizer-se chateado com a ausência de Zelenski no encontro supostamente marcado para as 15h15 do último domingo no hotel em que se hospedara, o brasileiro criticou a intenção do Ocidente de forçar a rendição da Rússia. Vaticinou que levará a uma nova guerra fria e cravou que a Ucrânia e seus aliados “não querem a paz” neste momento.

O Brasil não está sozinho ao pregar a neutralidade e o início de um processo de paz. Índia e Indonésia mantêm-se na mesma linha e igualmente foram expostas ao constrangimento diplomático armado no G7 de Hiroshima. A presença de Zelenski não fora antecipada aos países convidados e elevou o grau de pressão das potências ocidentais para as nações neutras tomarem partido contra a Rússia.

O indiano Narendra Modi recebeu Zelenski reservadamente, mas não se dobrou aos seus apelos. O sul-coreano Yoon Suk Yeol manteve sua oposição ao envio de armas à Ucrânia depois de encontro bilateral. A colheita do ucraniano foi farta entre os que já apoiam sua causa. Joe Biden, dos Estados Unidos, prometeu o aporte de mais US$ 375 milhões para a ofensiva militar ucraniana e o treinamento de pilotos para o uso de caças norte-americanos F-16 – o que indica o envio também dos aparelhos.

Índia e Indonésia têm razões próprias para levar a ferro e fogo sua neutralidade e insistir no processo de paz. Em condições distintas da do Brasil, esses países estão no mesmo entorno geopolítico da Rússia na Ásia e mantêm com Moscou interação econômica e comercial em escala bem mais robusta que a brasileira. A neutralidade, para o Brasil, está calcada em princípios – paz a qualquer custo – e em uma indisfarçável resistência em se opor diretamente à Rússia, de quem é sócia no fórum Brics junto com China, Índia e África do Sul.

A ambição do presidente Lula da Silva de se alçar como protagonista de negociações de temas de interesse global não deixa de ter sua cota de relevância. Há de se levar em conta ainda o atual contexto político doméstico. Em certas áreas relevantes, como a econômica, o PT é o principal foco de oposição. É possível imaginar a insatisfação do partido de Lula se o presidente aceitasse se aliar ao esforço de guerra liderado pelos Estados Unidos, o vilão que o lulopetismo ama odiar.

O fato é que a diplomacia presidencial de Lula por ora obteve alcance raso e respostas vagas. No G7, tornou-se claro que sua insistência na neutralidade e na criação de um grupo de paz tem escassa chance de sucesso. O presidente, porém, diz que irá “até ao fim do mundo” pela paz entre Ucrânia e Rússia. Noves fora a loquacidade voluntarista de Lula, há de se pesar o gasto de energia e mobilização diplomática, o isolamento do Brasil de parceiros relevantes e a perda de potenciais benefícios. O deselegante chá de cadeira que Lula levou de Zelenski mostra que o Brasil, por ora, não é visto pela Ucrânia – e, por extensão, pelos aliados de Kiev – como um mediador confiável.

Vezo patrimonialista

O Estado de S. Paulo

PGR contribui para fazer desta uma República peculiar, repleta de privilégios para uma casta de servidores

Uma nova ferida foi aberta nesta República há muito já açoitada pela concessão de privilégios a uma casta de servidores. É gente com muito poder – e nenhum espírito público – para sequestrar a democracia e fazê-la funcionar como meio de satisfação de seus interesses de classe.

Há poucos dias, o procurador-geral da República, sr. Augusto Aras, regulamentou o pagamento do adicional por “acúmulo de acervo processual, procedimental ou administrativo” para seus colegas de Ministério Público da União (MPU), um mimo que foi aprovado às pressas pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), presidido por Aras, em dezembro do ano passado. A regulamentação, publicada no Diário Oficial da União do dia 19 passado, tem efeito retroativo. Ou seja, a partir de agora, os procuradores poderão reclamar o crédito do benefício acumulado desde janeiro de 2023.

Em tese, está-se falando da concessão de uma folga a cada três dias trabalhados sob “acúmulo de serviço”, o que chega a ser um insulto à esmagadora maioria dos brasileiros. Mas, quando os doutos procuradores não se sentirem tão cansados, poderão “vender” essas folgas e transformá-las em dinheiro no bolso – mais especificamente, em um aumento salarial de 33%, o equivalente a cerca de R$ 11 mil por mês.

Evidentemente, o sr. Aras, referendado pelo CNMP, não classificou o novo penduricalho como aumento salarial, e sim “gratificação”. O objetivo, claro, é burlar o dispositivo constitucional que determina como teto da remuneração do funcionalismo público o salário dos ministros do Supremo Tribunal Federal, hoje fixado em R$ 41,6 mil. Indenizações de qualquer natureza não estão sujeitas ao chamado abate-teto.

Augusto Aras está em desabalada campanha para ser reconduzido ao cargo ou, no pior cenário, influenciar a escolha de seu sucessor à frente da PGR pelo presidente Lula da Silva em setembro próximo. Angariar apoio entre os pares, fazendo cortesia com o chapéu alheio, insere-se nesse contexto. Mas é o caso de recordá-lo, por mais constrangedor que seja para este jornal fazê-lo, que a Constituição incumbe ao Ministério Público, antes de qualquer coisa, “a defesa da ordem jurídica”. E não há como falar em defesa da ordem jurídica quando ninguém menos que o procurador-geral da República recorre a uma malandragem para garantir a concessão de mais um privilégio para sua categoria ao arrepio da Lei Maior.

Ademais, além de ser flagrantemente inconstitucional, o penduricalho é um prêmio ao desleixo, um convite à ineficiência do Ministério Público. Afinal, que procurador ou promotor País afora haverá de se sentir estimulado a trabalhar melhor em prol da sociedade ao perceber que o represamento de processos sob sua responsabilidade significa mais dinheiro no seu bolso?

Em nome do melhor interesse público, o Congresso precisa discutir um projeto de lei que reavalie as atuais competências do CNMP. O órgão, majoritariamente composto por membros do Ministério Público, não pode estar acima do bem e do mal na defesa de interesses corporativistas.

 

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