terça-feira, 23 de maio de 2023

Entrevista | Fernando Limongi: Plano de Moro e de Deltan é ‘profundamente antiliberal’

Marcelo Godoy / O Estado de S. Paulo

Para pesquisador, símbolos da Lava Jato revestiram ‘projeto arbitrário’ como algo positivo Cientista político, é professor da USP e da FGV. Autor do livro ‘Operação Impeachment: Dilma Rousseff e o Brasil da Lava Jato’

“A classe política não é a escória da sociedade. O que há de pior também está no Judiciário, no Ministério Público, em todo lugar”

O impeachment é um processo excepcional, cujas consequências são incomensuráveis. A afirmação do cientista político Fernando Limongi está logo na introdução de seu livro Operação Impeachment, Dilma Rousseff e o Brasil da Lava Jato (editora Todavia, 304 págs., R$ 84,90). Investigar o papel dos principais atores da crise que tirou o PT do poder e pavimentou o caminho para a ascensão de Jair Bolsonaro (PL) revela ao mesmo tempo os diversos projetos de políticos e de grupos sem os quais o processo que convulsionou o Brasil seria ininteligível. Professor da Universidade de São Paulo (USP) e da Fundação Getulio Vargas (FGV), Limongi diz que esquerda e direita queriam capturar a Lava Jato, que, por sua vez, tinha seu próprio projeto de poder.

Leia a seguir trechos da entrevista:

Por que as disputas em torno do combate à corrupção são importantes para entender a queda de Dilma?

Essas disputas ganharam relevância enorme no Brasil e no mundo. Quem cria a Transparência Internacional é um exfuncionário do Banco Mundial responsável pelas reformas liberalizantes na Europa do Leste. O projeto fez água e eles precisaram de uma explicação: os agentes não se comportavam como deveriam. No Brasil, vários elementos fazem a corrupção se tornar um tema candente. No final do governo de Fernando Henrique, uma série de denúncias coloca essa preocupação no centro do debate. É quando o PT se apresenta como alternativa moderna, limpa, que não recorreria a essas práticas. Isso explica em parte a vitória de Lula em 2002. O evento seguinte é o mensalão, quando os pés de barro do PT aparecem. Por um momento o PT acreditara que poderia arrecadar fundos com os militantes. A ficha caiu e ele percebeu que o modelo era inviável. Começou a arrecadar fundos da forma como sempre se arrecadava, no Brasil e no mundo.

Mas como essas disputas em torno da pauta do combate à corrupção levaram à queda de Dilma?

A decisão crucial da Dilma foi de limpar a Petrobras. A tradição era que a empresa fosse fonte de recursos para o sistema político. Ela resolve tornar a empresa eficiente, a base da industrialização nacional a partir do pré-sal. Demite Paulo Roberto Costa, Jorge Zelada e Renato Duque, as três principais diretorias da Petrobras, cada uma com um partido. Esses três serão as três forças que vão alimentar a Lava Jato, que se ocupa, no começo, do primeiro e do segundo governo Lula. A força-tarefa estava investigando o passado, mas sempre escrevia no presente, fazendo um truque retórico genial. A intervenção da Dilma gera um conflito interno na coalizão governante. Quem perdeu recursos na Petrobras reagirá.

O historiador Christopher Clark usa a imagem dos “sonâmbulos” para descrever como a elite na Europa caminhou em direção ao abismo em 1914. Pode-se dizer que Dilma, Eduardo Cunha, Aécio Neves e outros se comportaram da mesma forma, rumaram para a catástrofe sem se darem conta?

A ideia é essa. Achavam que conseguiriam controlar a Lava Jato. Dilma estimula as investigações para se vingar dos seus adversários, que reagiram à limpeza na Petrobras. Ela estava enfrentando o Eduardo Cunha e a Construindo um Novo Brasil (CNB, corrente interna do PT). O Aécio está pensando na eleição de 2018. Os movimentos de apoio de última hora à candidatura dele em 2014 e a militância que saiu à rua dão a perspectiva de usar os manifestantes como arma para vencer o combate interno com Geraldo Alckmin.

Aí entra um personagem fundamental, a Lava Jato.

Em dezembro de 2015, o Rodrigo Janot monta a prisão do (senador) Delcídio (Amaral), que é o catalisador que desestrutura o sistema político pela primeira vez. A segunda vez será em fevereiro, quando a Lava Jato faz a Operação Acarajé e desestrutura o que seria o acordão entre os políticos.

A Lava Jato não trazia dentro de si a antipolítica, uma corrente que se reclama como antissistema? Ela se entrelaçou com a antipolítica à esquerda e à direita?

O MPF e o Poder Judiciário têm uma concepção própria do mundo político, que vê muito negativamente o processo eleitoral. Temos duas autoridades competindo pelo poder. Uma chega ao cargo por concurso, que são promotores e juízes, e outra que chega por meio (do processo) eleitoral, que são os legisladores e os chefes de Executivo. O artigo original do Sérgio Moro, em que ele afirma a concepção do que seria a Lava Jato a partir da Operação Mãos Limpas, é uma visão que coloca o MP e a Justiça Federal como grandes censores do sistema político, uma agência da moralidade e do respeito à coisa pública.

Censores dentro de uma tradição romana?

Uma tradição bem antiga, que tem a ver com o renascimento do republicanismo clássico no debate político contemporâneo: essa ideia de que a moralidade é central. E que a moralidade dos agentes públicos tem de ser vigiada e controlada por alguém que tem o poder para puni-los. Esse alguém não é o eleitor, porque ele é incapaz. Essa visão tem um menosprezo, uma deslegitimação de todo o sistema político-eleitoral. É a visão dos funcionários públicos que chegam a cargos de poder por meio de concurso. Há uma competição entre o Judiciário e o Ministério Público e os eleitos. O projeto do MPF é assumir essa posição de grande censor. Está consubstanciado nas dez medidas contra a corrupção. Esse é o projeto que vai dar o apoio à Lava Jato.

Existiria um partido da Lava Jato?

Não. Tem um caldo de cultura que pode enveredar por várias correntes. Moro e Deltan Dallagnol não eram desde sempre bolsonaristas. Jair Bolsonaro é a chance de fazer o projeto deles, por isso Moro aceita ser ministro. Mas pensar que isso é só oportunismo é minimizar. Há uma filosofia, que é a visão tecnocrática de que político é tudo lixo e, sobretudo, uma ideia de que uma boa Justiça é punição rápida, imediata e eficaz. Todos os anteparos que o liberalismo criou para evitar injustiças caem por terra. É um projeto profundamente antiliberal o de Moro e o de Dallagnol. O que me chama a atenção é como a gente pôde simpatizar com ele, o quanto eles conseguiram construir um projeto totalmente antiliberal e arbitrário e revesti-lo como algo positivo. O poder e a soberania têm de estar nas mãos dos políticos eleitos. A classe política não é a escória da sociedade. O que há de pior também está no Judiciário, no Ministério Público, em todo lugar. Ninguém tem o monopólio do saber ou pode reivindicar o papel de empurrar a história. Não cabe a ninguém fazer isso. Se couber a alguém, cabe aos políticos eleitos. Quem é eleito não é a escória. Você pode não gostar, mas o mandato dele é melhor do que qualquer outro, pois ele é renovável. Você pode demiti-lo. Perdeu, ponha a viola no saco e aguenta. É o que temos para hoje e o que funciona melhor. 

Um comentário:

Claudio Serricchio disse...

Essa análise parece compactuar com as ideias de que:

- a lei não vale para todos;
- eleições equivalem a um excludente de ilicitude para políticos;
- o desvio de recursos públicos para financiar eleições não macula gravemente o próprio processo eleitoral;
- o financiamento ilegal das campanhas não se traduz na captura do poder político pelo poder econômico e que
- os desvios de recursos públicos pelo conluio de políticos com empresas que fraudam a concorrência e os sistemas licitatórios, superfaturando
os bens e serviços fornecidos, não tem grave impacto nas contas públicas e na capacidade dos serviços públicos atenderem a sociedade.