O Globo
Menino de 10 anos foi fuzilado por
policiais militares quando se distraía com um telefone celular na porta de casa
Foi na exibição final de “Macacos”,
monólogo que rendeu ao fenômeno Clayton Nascimento os prêmios Shell, APCA e
Deus Ateu de melhor ator em teatro, que pude ver Therezinha, mãe de Eduardo. No
Rio de Janeiro, quem tem empatia e memória não precisa nem de sobrenome nem de
contexto para saber de quem se tratava. Ao ouvir os dois nomes, foi natural ser
transportada para aqueles dias de abril de 2015 e todas as semanas, todos os
meses seguintes ao drama do menino de 10 anos fuzilado por policiais militares
quando se distraía com um telefone celular na porta de casa, no Complexo do
Alemão.
Na peça, o ator, também autor e diretor da obra (eu disse fenômeno), encena os minutos finais da criança inocente, a dor visceral da mãe ao saber do filho morto, o encontro póstumo, que só o teatro e a fé tornam possível. Anos atrás, Therezinha se emocionou ao saber da indignação, da denúncia, da homenagem em forma de arte, e foi ao encontro de Clayton. Desde então, não é incomum vê-la no espetáculo. Naquele domingo de julho, o último da temporada carioca, ela saiu da plateia, subiu no palco e fez um apelo por justiça por seu filho, o menino de 10 anos fuzilado por policiais militares quando se distraía com um telefone celular na porta de casa, no Complexo do Alemão:
— O crânio do meu filho caiu dentro da
minha sala. Eu creio que aqui tem muitas mães. E, quando uma mãe chora, todas
choram. Estou atrás de justiça por meu filho. Já são oito anos de muita luta,
muita dor e muitas lágrimas. Mas a justiça não chegou, porque eu sou uma mãe
preta, favelada e pobre. A Justiça brasileira não funciona para mim nem para as
mães de tantos jovens assassinados em vários locais do Brasil.
Therezinha Maria de Jesus morreu um tanto
naquele 2 de abril. Eduardo de Jesus Ferreira, hoje, estaria a um mês de
completar 19 anos. Sua vida foi interrompida por agentes do Estado, tal como a
de 1.330 pessoas apenas em 2022. Os dois PMs tornados réus pelo assassinato
estão virtualmente absolvidos, porque a defesa conseguiu convencer o Tribunal
de Justiça do Rio a trancar a ação penal. A Segunda Câmara Criminal deferiu o
habeas corpus, em 2017. Dois anos depois, o caso transitou em julgado sem
passar pelo Tribunal no Júri, a quem cabe julgar crimes dolosos contra a vida.
A investigação confirmou que partiu da arma
de um policial o tiro de 7.62 que atingiu a cabeça do menino de 10 anos
fuzilado quando se distraía com um telefone celular na porta de casa, no
Complexo do Alemão. O juízo afastou as provas técnicas e tratou de forma
assimétrica os depoimentos das testemunhas. Os agentes da lei disseram que
revidaram disparos de criminosos. Vizinhos informaram que não havia confronto
no momento. A Justiça aceitou a alegação de erro na legítima defesa, exacerbou
o valor da palavra dos policiais, depreciou o relato dos moradores. A alegação
foi que eles estavam “naturalmente acometidos de sentimento de revolta pela
trágica morte de uma criança e não presenciaram os fatos, pois, no momento em
que atingida a vítima, se encontravam dentro de casa”, recitou o defensor
público Luis Henrique Zouein, que assiste a família.
Processo trancado significa que não haverá
julgamento, a menos que surja uma nova prova, algo improvável oito anos depois
do crime. A mãe e o pai do menino, que a deixou pouco tempo depois do crime,
foram indenizados pelo governo do Rio, em acordo extrajudicial intermediado
pela Defensoria Pública. Os três irmãos de Eduardo ajuizaram ação por dano
moral. Nenhum dinheiro trará Eduardo de volta. É contra a impunidade, por
justiça, que Therezinha ainda clama. E insiste. E teima em esperar, apesar de
todas as evidências contrárias.
A mãe do menino de 10 anos fuzilado por
policiais militares quando se distraía com um telefone celular na porta de
casa, no Complexo do Alemão, integra movimento de familiares de vítimas
da violência do
Estado. Nesta semana, ela chorou por Priscila Menezes, mãe de Thiago Menezes
Flausino, o menino de 13 anos baleado por policiais militares quando passeava
de moto com um amigo, na Cidade de Deus, onde morava. Priscila teve de engolir
o choro para dizer que o filho gostava de cantar, sonhava ser jogador de
futebol, tinha um futuro pela frente, não estava armado, não era traficante.
Num país onde não há pena de morte, autoridades policiais justificam homicídios
criminalizando as vítimas.
Ontem, o presidente de República, na
necessária referência contra o assassinato de Thiago, diante do governador do
Rio, Cláudio
Castro, criticou a atuação dos agentes. Mas naturalizou a barbárie.
Lula disse que a “polícia precisa saber diferenciar o que é um bandido e o que
é um pobre que anda na rua”, como se o devido processo legal fosse irrelevante,
mero detalhe. Fez por merecer a nota de repúdio da ONG Justiça Global:
— A declaração, expressão do racismo
brasileiro, naturaliza a execução sumária e a suspensão de direitos. Agentes do
Estado não têm autorização para matar. A política de segurança pública não pode
ser baseada no terror e deve respeitar os direitos humanos de todas as pessoas.
Ou meninos de favela, Brasil afora,
continuarão sendo fuzilados enquanto se distraem com celular, andam de moto,
brincam com os primos, caminham para a escola…
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