Dom Pedro, ao passar de
regente a Defensor Perpétuo do Brasil (13 de maio de 1822), trata de
reorganizar as bases do listado, com o auxílio do gabinete José Bonifácio (janeiro
de 1822 a julho de 1823). O encontro da nação com o príncipe importou, desde
logo, na continuidade da burocracia de dom João, a burocracia transplantada e fiel
ao molde do Almanaque de Lisboa, atrelada ao cortejo do futuro imperador. Sobre
ela, nacionalizada nos propósitos mas não nos sentimentos, irá repousar a
estrutura política do país. A confluência eufórica do 7 de setembro — onde se
juntam sem se fundirem os liberais e os realistas — mal esconde os três rumos
possíveis de opinião: os liberais (José Clemente Pereira, Gonçalves Ledo e
Januário da Cunha Barbosa), embriagados pelos modelos revolucionários, os
homens do estamento tradicional, rançosos de absolutismo, e, entre as duas vertentes,
a conciliação precária de José Bonifácio. Flutuando entre todas, o príncipe,
aclamado e coroado imperador (1.° de dezembro), com a autoridade preexistente
ao pacto constitucional. A dispersa, desarticulada e fluida nação encontra, instalado
no Rio de Janeiro, um arcabouço fechado, disposto a exercer uma vigilante
ditadura sobre o país. O banho liberal, irradiado dos acontecimentos
portugueses e brasileiros dos dois últimos anos, não permitia, entretanto, a
passiva adoção do sistema absolutista. Não consentiam as circunstâncias, de outro
lado, potencialmente desagregadoras, a cópia do modelo teórico do liberalismo
europeu ou da democracia norte-americana. A organização do Estado entrelaça-se,
dentro das tendências em conflito e sob o dilaceramento centrífugo das capitanias,
ao cuidado superior de manter e soldar a unidade política do país, tarefa gigantesca
e incerta diante dos obstáculos geográficos e dos valores provinciais não homogêneos.
Apoiado no estado-maior de domínio, restos da corte de dom João VI, com os
remanescentes dos militares e funcionários residentes no Rio de Janeiro, forte
pelo apoio das províncias e do interior, solidariedade assegurada pela presença
de José Bonifácio, o Defensor Perpetuo põe em movimento uma revolução do alto,
"que o gênio de Turgot, poucos anos antes, concebera, como recurso extremo
para salvar Luís XVI, aos rumores profundos de 89. Invertidas as suas fontes
naturais, as reformas liberalíssimas, ampliando todas as franquias do
pensamento e da atividade, iriam descer a golpes de decretos, à maneira de
decisões tirânicas". Na cúpula, a estrutura absolutista, obsoleta e sem
calor, procura acomodar-se à teoria política. "Vimos, de um salto" —
sentiu Euclides da Cunha, em genial intuição — "da homogeneidade da
colônia para o regime constitucional, dos alvarás para as leis. E ao entrarmos
de improviso na órbita dos nossos destinos, fizemo-lo com um único equilíbrio
possível naquela quadra: o equilíbrio dinâmico entre as aspirações populares e
as tradições dinásticas."
*Raymundo Faoro
(1925-2003), "Donos do Poder", 3ª Edição, p. 329-330. Editora O Globo, 2001.
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