Eu & / Valor Econômico
O livro é instrumento ativo de ensino e
aprendizado, mesmo fora da escola. É obra, como texto e produção física.
Situa-se no campo da arte
A Secretaria de Educação do Estado de São
Paulo anunciou a dispensa dos 10 milhões de livros didáticos fornecidos pelo
governo federal para distribuição aos alunos das escolas paulistas. Em seu
lugar optou pelo livro virtual, acessível pela internet. É uma inovação
modernosa, antipedagógica. O secretário não explicou o que é para ele a
natureza da diferença entre o livro físico e o livro virtual.
Faz objeção ao conteúdo desses livros
físicos. Portanto, não conseguiu ou não achou necessário explicar aos educadores,
aos pais de alunos e aos próprios alunos suas razões para, no intuito de impor
um suposto conteúdo novo, impor também uma forma de deslivrar o livro do que
lhe é próprio, de destituí-lo de sua forma de livro segundo a tradição e a
cultura do livro.
Quando se fala em livro, fala-se também na forma da sua apresentação, de sua acessibilidade e de seu uso. Tradicionalmente, a forma do livro não se separa do seu conteúdo e do modo de usá-lo.
É claro que, tanto na forma física quanto
na forma virtual, o livro é para ser lido. O que pode, pois, diferençar, o
livro apresentado sob uma ou outra? Certamente, não é o conteúdo. Mas há
diferenças entre elas que implicam diferentes modos de lê-lo. O livro é
instrumento ativo de ensino e aprendizado, mesmo fora da escola. É obra, como
texto e produção física. Situa-se no campo da arte. O livro virtual transfere e
reduz a mesma obra para a condição redutiva de produto, do mero campo da
mercadoria. É deletável.
Na comunidade de leitores, a pessoa se
determina pela mediação da forma e da função do objeto de leitura. O livro é
instrumento de uma sociabilidade de que a escola também é. A proposta do
secretário dessocializa o livro que é meio decisivo na socialização das novas
gerações.
Ainda não se provou que o livro virtual
pode cumprir as mesmas funções cumpridas pelo livro físico. Livro é texto e
contexto. O livro físico implica uma demora da sua função, numa temporalidade
da leitura que é completamente diversa da do livro virtual. Ele se propõe ao
leitor como instrumento de uma visão de mundo, a da leitura como presença
permanente do outro, ao mesmo tempo cotidiana e histórico-social. O livro
físico é para ler, usar, lembrar, admirar. É para durar.
Na vida dos verdadeiros leitores, os livros
são parte de sua biografia, de sua relação com o mundo. O livro é objeto de
afeto, tem lugar determinado na estante, como o tem nas referências vivenciais
do leitor.
Livro se dá de presente e tem um lugar em
nossa vida. Cumpre a função de presença do ausente - do amigo, dos pais, dos
avós, dos irmãos, das pessoas que admiramos e amamos. O livro, como as flores,
é uma expressão do querer bem, é o retorno simbólico do ausente.
O livro virtual é destituído dessas
qualidades, menos a de que pode ser lido. Ele não se torna parte da vida de
quem só pode clicar-lhe o link para o ler. É redutivamente um instrumento do
dedo indicador sem tornar-se necessariamente instrumento das ricas
possibilidades do cérebro.
O livro eletrônico é uma abstração,
despojada dos sentimentos que o tornam meio de construção social da condição
humana, uma mediação na humanização do homem ao longo de uma história. Desde o
dia em que Gutemberg, por meio dele, transformou-o em instrumento da liberdade.
Em meu College, em Cambridge, numa biblioteca do século XVI, ainda há livros,
anteriores a Gutenberg, pesadíssimos, atados por uma corrente ao móvel da
leitura. Gutenberg desatou-os dessa prisão restritiva.
Em casa, temos uma biblioteca de
aproximadamente 3 mil volumes. Cada livro tem em nossa vida uma história, uma
significação. Lemos e relemos, fazemos marcas com lápis de cor, cada cor um
indício da construção da leitura. Cada leitura de um mesmo livro nos revela um
livro diferente. Nossos livros, nas marcas, têm uma dimensão arqueológica.
Um link de livro virtual não me devolve a
diversidade de momentos de sua leitura, que transformaram o único em muitos.
Todo livro é um livro de poesia, a poesia da vida do leitor, só possível num
livro físico, enquanto meio de conhecimento e objeto de afeto. É impossível amar
um link.
O livro virtual reteve do processo
histórico e da cultura redutiva que levou a ele sobretudo o que lhe é
impróprio, a condição de mercadoria e de objeto de consumo. Livros não são para
consumir, são para ler, por aquilo que a leitura propriamente significa. Há
nele, portanto, uma das dimensões de nossa alienação moderna. O livro virtual é
também para ser lido. Mas em sua circunstância vazia acaba sendo instrumento de
uma leitura sempre inacabada. É inútil voltar a ela para reencontrar o que ficou
faltando, pois é o que não está lá.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Sociologia do desconhecimento - Ensaios sobre a incerteza do instante” (Editora Unesp, 2021).
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