Folha de S. Paulo
Cria-se um ruído desnecessário com quem vê
democracia e direitos humanos como valores centrais
"Of course." ("É
claro.") Foi a resposta seca —alguns interpretaram como incrédula— da
jornalista ao ouvir o presidente
Lula, na Índia, afirmar sem meias palavras que descumpriria a
decisão do Tribunal Penal Internacional que pede a prisão de Vladimir Putin.
O que é claro é que a aplicação dessa
decisão, caso Putin viesse ao Brasil, não seria nada trivial. Um chefe de
Estado —e ainda de uma potência militar— chega para uma reunião e sai algemado?
Não é o tipo de coisa que se faz assim com leveza. Mas é também, como o próprio
Lula foi obrigado a reconhecer no dia seguinte, uma decisão que
cabe à Justiça.
Putin, por sua vez, sabe dos riscos que corre se começar a viajar por aí —e um mandado de prisão expedido por um tribunal é o menor deles. Não deve sair de casa tão facilmente. Ou seja, muito barulho por nada.
A questão é mais profunda: o que ganhamos
com esse tipo de manifestação de Lula? Essa bagunça, esse vai e volta, nos
beneficia de que maneira? Criamos um clima mais amistoso com Putin e grupos que
o apoiam. Ao mesmo tempo, criamos mais um ruído desnecessário, aí sim, com todo
mundo que vê na democracia e nos direitos humanos como valores centrais.
E talvez essa seja a pergunta que caiba
fazer agora: na sua busca pela política externa "não alinhada", Lula
está disposto a se desalinhar dos direitos humanos?
"Temos de ter cuidado para que o
discurso de direitos humanos, por mais válido que seja, não transforme-se em
uma arma política para aqueles que se incomodam com o fortalecimento e o
crescimento econômico do mundo em desenvolvimento." Essa fala não veio do
ministro da Economia ou da Agricultura, preocupados em fazer negócios. Veio do
nosso ministro da Cidadania e Direitos Humanos, em entrevista para o UOL.
A condenação de Putin, cabe ressaltar, não
é mera perseguição internacional de capangas dos EUA (que aliás não aceita o
TPI); ela decorre do fato de que o governo russo cometeu crime de guerra ao
deportar crianças ucranianas para a Rússia em
territórios ocupados.
Com sua vitória em 2022, Lula foi aclamado,
celebrado pelas nações desenvolvidas do mundo democrático, que receberam sua
eleição como uma lufada de esperança. Mas parece ansiar mesmo é pela amizade de
qualquer tiranete subdesenvolvido que reproduza discurso da Guerra Fria.
Não aprendemos nada com o vexame que foi
nossa relação amistosa com o Irã em
2009 e 10? Defendemos o programa nuclear iraniano, recebemos o então presidente
Ahmadinejad de braços abertos, passamos vergonha ao relativizar sua negação do
Holocausto e a homofobia de seu governo, e não ganhamos nada.
A democracia liberal está longe de ser
perfeita. Mas é também, de longe, a organização social e política que mais nos
aproxima de uma sociedade mais justa, estável, solidária e próspera,
especialmente os mais vulneráveis. E está sob ataque: tanto interno, com
movimentos que buscam corroer suas bases, quanto externo, na forma de regimes
autocráticos que se afirmam com cada vez mais desenvoltura —a guerra expansionista
da Rússia é o maior exemplo disso.
Buscar comércio e diplomacia com todos é um fim nobre. Distanciar-se dos EUA quando ele promove invasões e regimes brutais, idem. Mas tornar esse distanciamento um cacoete automático, que resvala para a defesa de ditadores toda vez que o presidente fala de improviso, é preocupante. Se forem só palavras ao vento, geram um ruído desnecessário com nossos reais aliados de quem podemos obter reais vantagens. Se indicarem um direcionamento real futuro, são prelúdio de um fracasso ético e econômico.
3 comentários:
Perfeito
■ESTARRECEDORA, esta declaração!
Eu não sabia que o Ministro dos Direitos Humanos havia declarado isso.
Leia com atenção::
"Temos de ter cuidado para que o discurso de direitos humanos, por mais válido que seja, não transforme-se em uma arma política para aqueles que se incomodam com o fortalecimento e o crescimento econômico do mundo em desenvolvimento."
●Se esta declaração houvesse sido dado por...
▪Bolsonaro.
=>Seria estarrecedora!
●Se esta declaração houvesse sido dada por...
▪Um Ministro da Educação ou da Saúde ou outro.
=>Seria estarrecedora!
Mas esta declaração foi dada por ninguém menos que... o Ministro dos Direitos Humanos!
Sendo o Ministro dos Direitos Humanos quem ele é, esta é uma declaração que empata e até supera os abusos das declarações de Lula e de Bolsonaro!
▪Mas eu já li declarações anteriores do Ministro dos Direitos Humanos, Silvio Luiz de Almeida, que foram quase tão absurdas e abusadas quanto esta.
Se esta declaração fosse dada por um ministro do Governo Bolsonaro, é claro que gritaríamos pela demissão dele. Eu gritaria! E você?
Temos de tomar cuidado.
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