Eu & / Valor Econômico
O Brasil não pode cometer o erro de agir
agora, apesar da normalidade ritual do dia 7, como se a ordem tivesse sido
restabelecida depois dos quatros anos de tumulto político e baderna
governamental
O 7 de Setembro, em princípio, confirmou o
retorno do Brasil à ordem. Os oficiais-generais bateram continência para o
presidente da República como é do regulamento. Nenhum oficial das Forças
Armadas é dono de sua patente nem chegou a ela por direito de nascimento. O
presidente da República recebeu as continências que lhe eram devidas, como é de
lei, nem poderia recusá-las pois nunca é continência à sua pessoa, mas à sua
função.
Somos um país que tem dificuldade para
distinguir, na política, a pessoa que ocupa uma função, qualquer que seja, da
função ocupada. Aqui, as funções grudam na pessoa como se fossem atributos de
nascimento. Vimos isso, mais uma vez, nas eleições passadas. O eleitorado deu
anômala preferência para fardados que agregaram ao nome civil a função militar
eventualmente ocupada. O que sugere ao eleitor que o candidato vai ao
parlamento como polícia, para mandar na instituição e não para representá-lo.
O mesmo acontece com os numerosos pastores evangélicos eleitos para as casas do Congresso que agregam ao nome o título de “pastor”. O que pode estar induzindo o eleitorado evangélico a escolher seus candidatos como se estivesse enviando um missionário e não um representante ao parlamento.
Se estão sendo enviados para o Poder
Legislativo, ou para o Poder Executivo, como missionários de suas igrejas,
estão no lugar errado. Tecnicamente seu mandato equivocado é para algo que não
corresponde à natureza própria de sua eleição. Com a supressão da concepção de
religião oficial do Estado, na República, e a decorrente liberdade religiosa,
religião tornou-se assunto privado, de celebração doméstica ou eclesial.
Por tudo isso, o Brasil não pode cometer o
erro de agir agora, apesar dessa normalidade ritual do dia 7, como se a ordem
tivesse sido restabelecida depois dos quatros anos de tumulto político e
baderna governamental, como a demonstrada na reunião do governo de então de 22
de maio de 2020.
Quando a ditadura terminou, em decorrência
da eleição de Tancredo Neves para a Presidência da República, achamos todos que
só por isso a democracia tivesse sido restabelecida. Até o início do segundo
governo de Dilma Rousseff isso parecia verdade. Se tivéssemos observado os
detalhes do período democrático que foi desde a posse de Sarney até a cassação
de Dilma, teríamos notado um conjunto extenso de sinais, tanto na direita
quanto na esquerda, de incapacidade para tolerar a democracia, de um lado, e de
reconstruir a democracia, de outro.
Neste momento, são muitas as evidências de
anomalias antidemocráticas ativas, minando as bases da democracia. Estão
presentes em todos os setores da vida nacional: nos partidos, no empresariado,
nas Forças Armadas, nas igrejas, na difusa classe média. A facilidade com que
milhares de pessoas foram mobilizadas para a baderna de 8 de janeiro, em
Brasília, a dos recursos para transportá-las, alimentá-las e abrigá-las, indica
predisposições sociais que persistem.
A inacreditável tolerância de porta de
quartel para o ato sabidamente de desestabilização das instituições, apesar de
os desordeiros estarem usando a bandeira nacional como traje e trapo, o que é
crime capitulado em lei, teve a cumplicidade dos que estavam ali para
reconhecer o vigor da lei, sobretudo na adjacência de um quartel.
Portanto, esta nova oportunidade de
democracia, para que não seja a última, pede urgente precedência, sobretudo nas
instituições universitárias e científicas, para o estudo, análise e
interpretação dos fatores, causas e consequências do crescente autoritarismo
brasileiro em todos os âmbitos de sua germinação e difusão. Quais são os
sujeitos, entre nós, de uma nova vocação totalitária de intolerância e
desapreço pelo direito democrático à pluralidade e à diferença? Como educá-los?
O autoritarismo é endêmico entre nós.
Decorre de sermos uma sociedade historicamente estruturada sobre a escravidão.
De pessoas intocáveis que dominam pessoas supostamente ínfimas.
Convém lembrar uma iniciativa emblemática
no trato do tema, de Theodor Adorno e sua equipe, na preparação e publicação,
em 1950, de “The Authoritarian Personality”, nos EUA. O fato de que os
americanos tenham participado decisivamente da guerra contra os países do Eixo,
especialmente a Alemanha nazista, não queria dizer que não houvesse entre eles
pessoas de propensões nazistas.
A experiência da fragilidade democrática
pós-ditatorial no Brasil sugere a urgência de conhecermos cientificamente as
bases sociais de nosso autoritarismo para vencê-lo e superá-lo de fato e de
vez. Para que se possa reconstruir o Brasil como sociedade socialmente crítica,
isto é, democrática, pluralista, libertada da intolerância fascista.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Sociologia do desconhecimento - Ensaios sobre a incerteza do instante” (Editora Unesp, 2021).
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