Folha de S. Paulo
Existe um modo vicioso e falso de combater
o bolsonarismo
Há duas formas primárias de se opor ao bolsonarismo. Uma é virtuosa e concorre para enfraquecê-lo. A outra é viciosa porque falsa. Fortalece aquilo que diz combater. O início do julgamento dos golpistas de 8 de janeiro, com Nunes Marques propondo dois aninhos e meio de regime aberto para depredadores dos Três Poderes, talvez contribua para que algumas almas que andaram um tanto confusas, a zanzar pelos círculos do inferno, encontrem o bom caminho. Não será ainda o paraíso; apenas a fuga de certo estado de confusão mental. Já é um ganho. Infelizmente, não há um Virgílio para nos advertir e nos instruir sobre os perigos das profundezas. Nem uma Beatriz a nos guiar para a salvação. É uma pena! Estamos todos cá, dentro de nós, obrigados a fazer escolhas, nem que seja o mal menor. Do que falo?
Goste-se ou não, a verdade é que o
bolsonarismo exerce o papel de um partido, que atua, inclusive, na clivagem de
votos. O "Centrão" tem algo de etéreo. Trata-se de um sistema de
relações de troca de pauta variável, elástica e até errática. Daí deriva a
força de Arthur
Lira (PP-AL),
presidente da Câmara.
Comporta-se como um eficientíssimo líder sindical da sua categoria. Conseguiu
criar um Parlamento que, em boa parte, governa sem responder pelos resultados.
Nota à margem: fez-se
a minirreforma ministerial. Dei início à contagem regressiva para que Lira
comece a advertir o governo de que ainda
não tem uma base sólida. Leia-se: quer mais poder sem responsabilidade.
Adiante.
O bolsonarismo é outra coisa. Constituiu-se
também como ideologia. Sei que a palavra soa grave demais, até pomposa, quando
se consideram as expressões mais estridentes e buliçosas dessa gente. Vejam o
tal Nikolas
Ferreira, que usa
uma peruca loura para ironizar as pessoas trans, ou o espantoso Gustavo
Gayer, para quem o "QI
dos macacos" é superior ao dos africanos. Embora essa metafísica do
atraso os abrace, ela é bem mais ampla e tem um enraizamento maior na sociedade
do que muitos supõem.
Ainda que as aspirações dessa turma sejam
financiadas por interesses econômicos identificáveis, escancarados às vezes,
não são eles a lhes dar
densidade eleitoral. A súcia conseguiu, com efeito, plasmar um conjunto de
valores que supostamente explica a seus adeptos, a seu modo, o funcionamento da
máquina do mundo. Um de seus pilares é o discurso do reacionarismo do medo.
Apelam à prevenção reativa sob a alegação de que "o outro lado" faz
pior. Exercitam, pois, como nenhuma força política fez antes no Brasil, o poder
das vítimas. Seriam perseguidos por perigosos comunistas, razão por que
precisam agir antes que "os outros" os destruam.
E agora começo a voltar lá ao primeiro
parágrafo. Estou entre os que entendem que essa forma que me parece sucedânea
de um partido e que empresta a seus adeptos uma explicação, estupidamente
falsa, sobre o funcionamento da sociedade veio para ficar e representa uma
ameaça efetiva a avanços civilizatórios da era democrática. Opor-se a ela
torna-se um imperativo moral e ético incondicionado e virtuoso. O fenômeno tem
se ser compreendido, caracterizado e enfrentado.
E há os que chamo "viciosos". Admitem,
sim, que o ex-presidente é a vanguarda do atraso, mas não porque repudiem os
pressupostos da reação, mas porque, dados os seus modos desastrados,
contribuiria para fortalecer o PT. A sua
divergência com a força hoje preponderante na direita não nasce de uma
diferença de visão de mundo ou de agenda. É que julgam o bolsonarismo pouco
inteligente diante dos supostos ardis do petismo. Chegam até a acusar Lula e Bolsonaro de
dançar uma espécie de minueto de duelistas. De fato, não oferecem combate ao
bolsonarismo; fortalecem-no. Seus verdadeiros inimigos são as esquerdas e o PT.
São bolsonaristas com complexo de superioridade.
O início do julgamento dos golpistas vem nos lembrar a natureza da luta civilizatória. Nunes Marques pediu dois anos e meio em regime aberto para invasores do Congresso e do Supremo. Quem realmente considera que petismo e bolsonarismo são males equivalentes, opostos e combinados, bem, esse está nas profundezas e de lá não sairá tão cedo. Não há Virgílio ou Beatriz que os salvem.
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