Folha de S. Paulo
Mais que celebração, data lembra que tema
permanece central na vida nacional
O mundo
vive uma onda recorde de autocratização. Segundo relatório
do Instituto V-Dem, em 2022 o número
de ditaduras superou o de democracias liberais pela primeira vez em
mais de duas décadas, em um cenário em que o nível democrático global regrediu
ao que se observava na década de 1980 e cuja estimativa é de que 72% da
população mundial viva sob regimes considerados autocráticos.
O estudo do instituto sueco aponta que nos últimos anos o Brasil vinha figurando entre os expoentes desse processo, mas pondera que o retorno do campo democrático ao governo federal com a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) indica uma reversão do curso de autocratização do país. Sendo assim, nesse contexto em que as democracias estão em grave refluxo através do planeta, o Brasil vive uma janela de oportunidade para a retomada da sua construção democrática.
De fato, a sensação é que estamos sendo
resgatados das profundezas de um poço e alçados à superfície; é possível
enxergar luz e horizonte. Porém, a corda que nos iça está tão corroída que os
riscos de rompimento são constantes.
A democracia brasileira está em pleno
resgate, mas sua saúde ainda é frágil, e o processo de recuperação e
fortalecimento, longo. Isso porque a vitória
eleitoral do campo democrático em 2022 definitivamente não significou
um triunfo político da democracia no Brasil. A disputa foi extremamente
acirrada e não se pode perder de vista que 49,1% do eleitorado brasileiro optou
pelo projeto autocrático de poder no ano passado.
Independentemente das motivações por trás
da escolha nas urnas, o fato é que quase metade dos votantes do país não
apostou na democracia como caminho para a sociedade brasileira —ou ao menos
estava disposta a relativizá-la.
Os atentados
golpistas de 8 de janeiro, por sua vez, foram a expressão mais grave,
radical e criminosa do desprezo que parte da população dedica à democracia no
atual contexto político da nação. Mas não são apenas os episódios extremos que
revelam o ambiente inóspito à normalidade democrática que impera no Brasil. São
os processos institucionais e sociais mais ordinários do cotidiano que apontam
o grau de degradação da nossa cultura democrática, como intolerância à
alteridade, a incapacidade de diálogo e a ausência dos valores republicanos
mais elementares como base das ações e relações cidadãs. Vale destacar que
essas não são marcas exclusivas de um campo do espectro político —e é por isso
que o desafio do qual estamos diante é imenso.
Feliz e infelizmente, a democracia voltou a
ser agenda central para a sociedade brasileira. Se em um passado recente debatia-se
e lutava-se pelo aprofundamento da qualidade do jovem regime democrático no
país e pela ampliação do acesso aos direitos por ele prometidos, de uns anos
para cá a batalha passou a ser pela simples sobrevivência dos pilares
fundamentais de uma sociedade que se pretende democrática.
Da recente experiência autocrática
brasileira deriva um aprendizado vital: democracia é construção contínua e
cotidiana. Não há garantia de sua existência e qualidade se seus princípios e
suas práticas não forem ativa e incessantemente cultivados, fortalecidos,
idealizados, aprimorados e defendidos pelos cidadãos e pelas cidadãs que a
compõem.
Apenas o tempo, e sobretudo o árduo
trabalho da sociedade civil, dirão se o debate público, a preocupação e a ação
da sociedade brasileira finalmente se voltarão à agenda da democracia de
maneira premente e permanente, como se deve.
Ela precisa perdurar na centralidade da
pauta nacional até que a democracia se torne princípio e prática individuais,
coletivos e institucionais. Até lá, mais do que celebração, o Dia
Internacional da Democracia, celebrado nesta sexta-feira (15), será ocasião
de conscientização, priorização e construção.
*Jornalista, é mestre em ciência política e coordenadora-executiva do Pacto pela Democracia
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