Revista Veja
Poderíamos ser melhores, como país, do que estamos demonstrando
Os táxis agora estão lá, na Constituição. Não me surpreendo. Talvez tenhamos a única Constituição do planeta dizendo que um colégio (no caso, o Pedro II, no Rio de Janeiro), deve permanecer federal. Agora transformamos a alíquota zero para a compra de táxis em um direito constitucional. Ninguém deu lá muita bola para esse grãozinho de areia, no mar de regimes especiais em que se transformou nossa reforma tributária. E ninguém fez conta para saber quanto a brincadeira custará ao contribuinte “desorganizado”. De minha parte, fiz um ensaio. Supondo-se que tenhamos 245 000 taxistas (número que recebeu a bolsa-taxista), trocando de carro a cada cinco ou seis anos (desconto médio de 20 000 reais?), teríamos um custo perto de 1 bilhão de reais. O número pode variar um pouco. A pergunta é: para que isso? A justificativa diz que não seria “razoável que um benefício já consolidado e de tamanha importância para esses dois grupos seja extinto”. Detalhe: os “dois grupos” são as pessoas com deficiências e do espectro autista. Táxis entraram de carona, sem muita lógica. Os aplicativos estão aí, não há mais monopólio, os preços caíram. Então por que raios uma conta dessas no bolso do contribuinte? E mais: como algo assim vira um direito constitucional?
O texto da reforma é uma riquíssima coleção
de pérolas. Que tal um regime especial para o nosso futebol, com vistas à
“recuperação desse esporte nacional”? Justo. Um milhão de reais/mês para um
treinador e ainda pagar imposto? Difícil. E as agências de viagem e parques
temáticos? Setores “estratégicos de nossa economia”. E os parques não
temáticos? (meus preferidos). Talvez tenha faltado lobby. Há também 60% de
desconto no futuro imposto para setores vitais como a comunicação institucional
e eventos. Qualquer evento? A turnê 2034 dos Rolling Stones? A convenção
anual dos Hells Angels? Surgiu também um regime especial para a “economia
circular”. Conceito ótimo. Mas precisa estar na Constituição? O que
exatamente cabe, aí? Vale o mesmo para a alíquota zero nas “atividades de
reabilitação de zonas históricas e de áreas críticas”. O centro de São Paulo,
por exemplo. Do Rio. Ou Jaguarão. E por fim a “cesta básica estendida”.
Fui a campo entender o que significa isso e obtive uma frase: “É tudo que ficar
fora dos trinta ou quarenta produtos da cesta básica”. Quem sabe a “sobremesa”,
ironizou um economista. Se não faz parte da cesta básica, para que o incentivo?
A impressão é que palavras como “cesta ampliada”, “economia circular” ou “zonas
urbanas críticas”, uma vez na Constituição, funcionam como uma pescaria. Quando
normatizadas, terminam rendendo um bom dinheiro para setores da economia. É uma
história que já conhecemos. E por alguma razão teimamos em repetir.
Exemplo disso é o “regime automotivo do
Nordeste”. As isenções beneficiam basicamente uma empresa, que controla várias
marcas, conhecidas de todos. O TCU publicou um relatório sobre os resultados
desses incentivos, e foi categórico: “Desde 2010, foram cerca de 50 bilhões de
reais, sem alteração significativa da realidade socioeconômica da região”. A
renovação dos incentivos havia sido rejeitada na Câmara e foi restabelecida no
Senado. Nos bastidores, falava-se na “emenda Lula”,
dado o forte empenho do presidente na sua aprovação. As demais montadoras, por
óbvio, chiaram. A concessão dessa montanha de incentivos, coisa de 5 bilhões de
reais ao ano, desequilibra a competição de mercado. Mas esse nem é o maior
problema. A questão é a engenharia de colégio. O custo “difuso”, que “será
distribuído entre todos os demais contribuintes”, como diz singelamente o
relatório do TCU.
O sistema do lobby se retroalimenta. Se o
setor A vai a Brasília, conseguindo a incrível vantagem de pagar apenas 40% da
alíquota padrão do novo imposto, por que cargas d’água o setor B não iria
lá também? Foi o caso dos profissionais liberais. Os grandes escritórios de
advocacia, auditoria ou engenharia. Conseguiram um desconto de 30%. Se a
alíquota geral chegar perto dos 30%, os escritórios irão pagar 21%.
Praticamente a taxa que todos pagariam se o efeito manada do lobby e a
permissividade do mundo político não tivessem feito seu estrago. O triste é
observar como o país vai transformando uma ótima ideia, que é a ideia original
da reforma, em uma “colcha de retalhos”, expressão que tantas vezes usamos para
definir nosso atual sistema. O modelo em que “a tributação varia por tipo de
produto”, como bem observou o economista Marcos Lisboa, o que leva as empresas
a irem “alterando características do que produzem para obter alíquotas mais
favoráveis”. É isso. E basicamente o que estamos fazendo, no novo desenho. Ou
alguém acha que as empresas não farão os mesmíssimos ajustes para se enquadrar
nas dezenas de categorias de produtos e atividades econômicas protegidas na
reforma?
Alguém sugeriu que isso se deve a um fenômeno
conhecido como path dependency, isto é, a dependência de um padrão
anterior das relações de poder. A reforma não parte de uma tábula rasa, ou de
um pacto nacional. O setor automotivo há muito goza de uma vantagem. Por que
abriria mão? Vale o mesmo para a Zona Franca de Manaus, táxis, clubes de
futebol ou o agronegócio. Feita de ajustes graduais, talvez fosse possível
formar coalizões reformistas majoritárias e impor derrotas a grupos de pressão.
Feita de uma só vez, a reforma tende a gerar um clássico problema de ação
coletiva. A incerteza leva cada setor a buscar proteção. A lógica há muito
conhecida do dilema do prisioneiro: por que devo cooperar, aceitando a regra
geral, enquanto os demais se movimentam para “trair”, obtendo o seu quinhão de
benefícios? O mercado percebe a fragilidade do comando político e faz o
seu jogo. O remédio para isso é precisamente o que nos falta: convicção e
liderança. Seja no Executivo, que atuou ele mesmo como impulsionador de
benefícios, seja no Congresso. E na sociedade, onde sobra complacência. Ainda
nesta semana observava líderes empresariais e acadêmicos dizendo: “25 setores
ganharam exceções, mas está tudo o.k. Melhor do que nada”. Quem sabe vamos nos
tornando uma sociedade que espera muito pouco de quem dirige o país.
O ponto é: isso não precisa ser sempre assim.
O Brasil fez reformas complicadas, como as reformas trabalhista e
previdenciária, e se saiu bastante melhor. Nosso foco desde o início deveria
ter sido buscar uma alíquota padrão mais baixa e mais igual para todos.
Decidimos pelo inverso: vantagens de todos os lados e uma taxa geral alta para
os sem-lobby. Os “pobres mortais fora das listas especiais”, como diz o
economista Felipe Salto. Na prática, todos pagarão a conta. Seja no efeito
sobre o crescimento, seja na própria estabilidade da reforma e suas regras.
Talvez seja um pouco dura esta análise. É para dizer que poderíamos ser
melhores, como país, do que estamos demonstrando, por estes tempos.
*Fernando Schüler é cientista político e
professor do Insper
Publicado em VEJA de 17 de novembro de
2023, edição nº
2868
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