Revista Veja
O Parlamento fecha os olhos e insiste em velhos hábitos
No ano de 1215, nobres ingleses se rebelaram
contra um rei que cobrava impostos escorchantes e crescentes e o obrigaram a
assinar a Magna Carta. Criou-se o Parlamento, um conselho para fiscalizar o
monarca e garantir que ele cumprisse a lei e não gastasse irresponsavelmente.
É função precípua do Parlamento, desde sua origem, manter o Executivo na linha. Mas Bolsonaro infringiu a lei incontáveis vezes, gastou muito mais do que poderia, desmontou as instituições e atentou contra a democracia — e o Congresso nada fez. As finanças se deterioram, Lula dinamita a responsabilidade fiscal, gasta de maneira temerária e avisa que quer gastar ainda mais — e o Congresso aplaude. Até porque ano que vem tem eleição. Os parlamentares não são só lenientes, como participam e se locupletam com entusiasmo. O Centrão (a turma que fez a festa no mensalão, no petrolão e no orçamento secreto) faz a festa com o Orçamento Secreto 2.0 — O Retorno: as emendas RP9 de antes agora são emendas RP2 e emendas Pix. E pau na máquina.
A outra função precípua do Congresso é,
claro, criar leis. E ele cria muitas leis. Em setembro, por exemplo, instituiu
a Semana Nacional do Empreendedorismo Feminino, a Semana do Migrante e do
Refugiado e o Dia Nacional dos Desbravadores, declarou Carlópolis (PR) a
Capital Nacional da Goiabada de Mesa e São Luís (MA) a Capital Nacional do
Reggae. E por aí vai. Mas o Congresso existe não para legislar abobrinha, e sim
para encaminhar as grandes questões nacionais. Quando o Executivo empurra (caso
da reforma tributária), até sai, mas a regra é a procrastinação.
Segurança, aborto e o marco temporal das
terras indígenas são temas importantes e estão na roda há décadas. Alguém viu
debate sério e aprofundado a respeito no Congresso? Não, só lacração e
video-selfie para publicar nas redes.
“Não admira que os eleitores não deem valor a
seus votos e encarem políticos como parasitas”
Os parlamentares enrolam e, quando o Supremo
decide, chiam que é “interferência de um poder sobre o outro” (não, não é). E
partem para o confronto, como na aprovação afobada do marco temporal após
declarada sua inconstitucionalidade(!).
O Senado merece menção particular. O Senado
moderno foi inventado nos Estados Unidos em 1787 com os objetivos de proteger a
legislação da “inconstância” e das “paixões” — como escreveu o estadista James
Madison — dos deputados e do público em geral e garantir uma análise cuidadosa,
que impedisse leis inúteis ou nocivas. Nosso Senado faz o oposto exato disso.
Não admira que os eleitores não deem valor a
seus votos e encarem políticos como parasitas. Em 2013, a indignação levou
multidões às ruas e derivou para o vandalismo. No ano seguinte, começou a
Lava-Jato, logo neutralizada. Em 2018, houve adesão maciça a um candidato visto
como anti-establishment. Em 2022, o ressentimento quase reelegeu o golpista que
tentou destruir a democracia brasileira.
Nossos políticos fecham os olhos e insistem
nos velhos hábitos — enquanto o ressentimento do Brasil contra Brasília só
cresce. A história mostra o que acontece quando o ressentimento chega ao ponto
de ebulição. O 14 de julho de 1789, na França, é o exemplo mais emblemático.
Publicado em VEJA de 17 de novembro de
2023, edição nº
2868
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