Folha de S. Paulo
Promiscuidade é palavra-chave para se
entender a expansão local do crime
Cena de interesse acadêmico para a operação de
GLO no Rio: a Polícia Federal prende um criminoso, cuja escolta eram
dois policiais militares e um sargento do Exército. Se, por hipótese, o ato se
estendesse à estrutura de sustentação do absurdo, seria preso também algum
vereador, algum deputado, algum promotor, algum juiz.
Promiscuidade é palavra-chave para se entender a expansão local do crime. O fenômeno pode evidenciar-se em outros estados, mas a imprecisão dos limites fluminenses entre poder oficial e criminalidade beneficia-se de uma transfusão inatingível por planos pontuais de segurança pública.
A palavra-chave não é, em princípio,
negativa. A cultura carioca sempre foi promíscua no sentido de trocas
aleatórias entre estratos sociais diferenciados por formas de vida migrantes.
Espremida entre mar e morros, a cidade soube combinar aportes europeus com
costumes e atmosfera afetiva da colonização negro-nordestina. O samba, o
Carnaval e o ethos praieiro resultam de criativa promiscuidade cultural.
Hoje isso cobra um preço perverso. O ser
carioca, ou guanabarino por demarcação do antigo estado da Guanabara, sofreu
metamorfose cívica ao se transfundir com a vida política do interior
fluminense. É que, em meados dos anos 1970, a ditadura militar fundiu dois
estados de características urbanas e culturais muito diversas. O pior do
arcaísmo político chegou à praia. Não por diversão, mas para gerir poderes de
Estado.
Os anos 1980 —"década perdida", por
estagnação da economia e elevação da dívida pública— foram tempo de ganhos para
a contravenção no Rio. Empoderados, os bicheiros incrementaram as relações com
a polícia e fizeram das escolas de samba seu cartão postal.
Com a estreia massiva da cocaína, quadrilhas
e armas pesadas substituíram os folclóricos "donos dos morros". Chico
Buarque viria a cantar que "o malandro aposentou a navalha". E deu
lugar ao oficial, eleito. Em tempos recentes, narcomilicianos
passaram a controlar territórios e votos, mafializando o poder.
Chegou-se a condecorar assassinos de aluguel. Nos últimos dez anos, cinco
governadores entraram em cana.
Tem sido imprudente a tolerância ao crime.
Mas a negação eufórica da realidade crua, estado de espírito sal-sol-sul
carioca, arrefece diante do terror das praças de guerra e dos poderes
antagônicos ao Estado formal, embora de mão comum com o informal: uma mão lava
a outra, sem que as duas lavem o rosto. A face suja do estado-bandido é
maquiada pela coalizão que abre as asas sobre o circo midiático e a violência
desenfreada nas ruas. Uma GLO realista deveria partir do fato de que o berço do
samba é o mesmo berço político do pior. O fato de que,
promiscuamente, estamos fundidos.
*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor,
entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”
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