Fora do palanque, Milei tem de se provar viável
O Globo
Vitória avassaladora nas urnas traduz desejo
de se livrar do peronismo, que há décadas leva o país ao precipício
A vitória de Javier Milei nas
eleições presidenciais da Argentina foi
acachapante. A vantagem foi de mais de 11 pontos sobre o peronista Sergio Massa —
55,7% dos votos, ante 44,3%. A mensagem das urnas não poderia ter sido mais
clara: a sociedade decidiu se livrar do peronismo, que tem levado o país ao
precipício há décadas, e acreditar nas promessas do ultraliberal populista. Tal
voto de protesto, mesmo que compreensível, mergulha o país na incerteza, pois o
novo líder é inexperiente e, até o momento, deu repetidas mostras de
instabilidade. Cabe a Milei demonstrar rapidamente o que fará e como reunirá
equipe e apoio político para implementar uma reforma realista do Estado
argentino.
Do ponto de vista do Brasil, todas as medidas para estabilizar a economia serão bem-vindas. O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva não escondeu a preferência por Massa e as críticas a Milei. Passada a eleição, Lula parabenizou os argentinos e, mesmo sem citar Milei, deixou claro que os interesses dos dois Estados precisam prevalecer. Milei tem mais a perder que a ganhar se entrar em disputas estéreis com o Brasil, em particular sobre o Mercosul. Ele já tem problemas demais a enfrentar.
Seu principal desafio, de longe, é a
economia. No primeiro discurso como presidente eleito, Milei foi sereno e
reconheceu que a situação do país é crítica. A inflação deve
fechar 2023 em torno de 200%. A dívida de US$ 43 bilhões com o Fundo Monetário
Internacional (FMI) é impagável. O montante em mãos de credores privados
estrangeiros é insustentável. Juros sobre dívidas em moeda local estão em três
dígitos.
Sem disposição política para reduzir os
gastos e com acesso limitado a crédito, os peronistas saíram imprimindo mais e
mais pesos até a inflação disparar. Obviamente, pobres são os mais afetados.
Atualmente 40% dos argentinos vivem sem recursos para consumir uma cesta de
produtos e serviços básicos. Os indigentes chegam a 9,3% da população. Com
exceção do período da pandemia, é a pior situação desde pelo menos 2004.
Mesmo antes de assumir, em 10 de dezembro,
Milei terá de enfrentar a realidade. A promessa de resolver a crise cambial
dolarizando a economia é inexequível. O Banco Central tem reservas
insignificantes, uma das razões da existência da profusão de taxas de câmbio e
do mercado paralelo pujante. Dada a situação da dívida externa e o histórico de
calotes, é difícil imaginar de onde sairia mais dólar. Como dolarização sem
dólares é uma impossibilidade, Milei precisa abandonar as promessas fantasiosas
da campanha para explicar como reerguerá a economia.
Em seu discurso, declarou que começava
naquele momento a “reconstrução da Argentina”. É inegável que o país tem muito
a melhorar. Nas duas últimas décadas, governos peronistas dobraram o tamanho do
ineficiente setor público, incharam estatais deficitárias e geraram déficits
públicos recorrentes. Atendendo a pressões sindicais, instauraram subsídios a
não poder mais, impuseram obstáculos aos empreendedores e deterioraram o
ambiente de negócios. Com um mínimo de competência, o novo governo poderá
promover, se não uma reconstrução, pelo menos uma transformação fundamental.
Para desatar o nó na economia, Milei terá de
enfrentar outro desafio, o político. O partido de Milei elegeu apenas 38
deputados entre 257 e sete senadores entre 72. Sem base sólida, ele não terá
como aprovar nada no Congresso. A aproximação com o grupo político do
ex-presidente Mauricio Macri é sua única saída. Com a adesão dos macristas, o
novo governo obteria maioria na Câmara. No Senado, seriam necessários votos de
outros aliados, até mesmo alguns peronistas. Nas províncias, onde o descontrole
fiscal é ainda mais preocupante, as perspectivas são incertas. Nenhum dos
governadores é ligado a Milei. Claro que isso pode mudar depois do resultado da
eleição.
Para a Argentina, o melhor que poderia
acontecer seria os macristas assumirem a gestão econômica e promoverem medidas
de ajuste fiscal, depois adotando uma solução ao estilo do Plano Real.
Eventualmente, o dólar poderia ser uma âncora transitória até a flutuação
cambial e a adoção de sistema de metas, como em qualquer país estável. Claro
que esse cenário é hoje mais desejável do que provável. Milei, ele próprio
economista, dificilmente deixaria de tentar impor suas ideias libertárias,
muitas delas impraticáveis. A perspectiva da posse, porém, costuma transformar
os políticos. O presidente eleito deve saber que os problemas argentinos não se
resolverão com uma alquimia monetária.
Há ainda uma questão de imagem. Milei passou
a campanha denunciando a “casta”, grupo de políticos que ele diz controlar o
país para benefício próprio. Aliar-se ao establishment político representa
certa traição ao próprio discurso — um “estelionato eleitoral”, que sempre
corrói a democracia. Outra incógnita é como se comportarão os peronistas e os
sindicatos. No passado, demonstraram pouco apreço à estabilidade ao explorar o
descontentamento das ruas em 2001 contra o então presidente Fernando de la Rúa,
que acabou renunciando. Caso apostem no “quanto pior, melhor”, também trarão
risco para a democracia.
Milei conquistou no domingo um mandato
inequívoco para promover mudanças. É provável que os argentinos não se
decepcionem se ele deixar de lado ideias desvairadas como acabar com o Banco
Central, mas jamais o perdoarão se fracassar no desafio de conter a inflação e
reerguer a economia. Sem um Centrão para compor maioria, Milei terá de
demonstrar enorme talento para costurar uma aliança sólida. Não faltam motivos
para ser cético, dadas sua inexperiência e sua personalidade histriônica. Cabe
a ele — e a seus aliados — provar que foi a opção certa.
Milei na Argentina
Folha de S. Paulo
Situação dramática do país demanda
negociação, não bravatas da direita populista
Ao escolher Javier Milei para a Casa Rosada,
o eleitorado argentino decidiu trocar um desastre conhecido por um salto no
escuro.
Triunfou no país vizinho, com margem de votos
bem acima da esperada, a direita populista que ascendeu em escala global no
último decênio —e cujas referências mais importantes para a região são Donald
Trump, nos Estados Unidos, e Jair Bolsonaro (PL), aqui.
Ainda que em proporções distintas, as
experiências americana e brasileira serviram para mostrar limites, riscos e
danos associados a tais escolhas. Nos dois casos, as soluções milagrosas
prometidas nas campanhas eleitorais se converteram em tensões políticas e
institucionais ou, nos exemplos menos nocivos, em nada.
Milei receberá uma
herança muito pior que as de seus congêneres, dado que a Argentina
continua presa à pauta de crises dos perdidos anos 1980. O governo cronicamente
deficitário não tem crédito doméstico nem internacional, acabaram-se as
reservas em moeda forte, a inflação saiu do controle e a pobreza se espalhou.
Uma eventual paralisia decisória, esperável
quando o presidente não tem experiência administrativa nem maioria no
Legislativo, terá consequências trágicas. O país precisa de reformas imediatas
—o que não pode ser confundido com voluntarismo ou atropelo dos ritos
democráticos.
Milei não exibe o pendor de Bolsonaro para a
cooptação de militares, mas compartilha com o brasileiro a aversão pela
política, o intuito de desacreditar o processo eleitoral, o gosto pela bravata
e a agressividade contra oponentes, inclusive líderes estrangeiros como Luiz
Inácio Lula da Silva (PT).
Tudo isso pode ajudar a atrair votos e
seguidores, mas não a governar. O inescapável ajuste das contas orçamentárias
só será viável e duradouro mediante entendimento com outras forças nacionais; a
recuperação do crédito passa por negociações com organismos multilaterais; o
aumento do comércio exterior depende da diplomacia.
As práticas perdulárias e paternalistas do
eterno peronismo manterão amplos apoios na sociedade e no mundo político
argentino. Revê-las demanda estratégia, convencimento e persistência. Anunciar
uma motosserra
contra as despesas do Estado ou privatizações em massa é fanfarronice estéril.
Os precedentes da direita populista não
encorajam apostas em mais moderação e pragmatismo por parte de Milei. Resta a
esperança de que a dramática situação de seu país leve o eleito à constatação
de que não há margem de erro.
Mais letras e números
Folha de S. Paulo
Mudança na educação de SP é bem-vinda; há
desafios no ensino integral e técnico
Dados de 2021 do Sistema de Avaliação de
Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (Saresp) mostram que 96% dos
concluintes do ensino médio na rede pública não conseguiam resolver uma equação
de primeiro grau, e 76% não eram capazes de interpretar um texto literário. São
índices preocupantes para o estado mais rico do país.
Fazem sentido, nesse contexto, mudanças no
ensino anunciadas pelo governo paulista —entre elas, a
ampliação da carga horária de matemática e língua portuguesa.
Considerando os três anos do ensino médio, o
número de aulas semanais de matemática passará de 10 para 17 (mais 70%), e de
língua portuguesa, de 10 para 16 (60%).
Haverá pequena queda na carga horária de
artes, filosofia e sociologia, de 4 para 2. Contudo, para os alunos que têm
interesse em artes e filosofia, essas disciplinas constam dos itinerários
formativos, que também foram alterados.
Atualmente há 11 itinerários, mas em 2024
serão apenas dois —Exatas/Ciências da Natureza e Linguagens/Ciências Humanas.
A redução se ajusta às demandas que levaram
ao projeto de lei que altera a reforma do novo ensino médio, enviado pelo
governo federal ao Congresso em outubro. Com infraestrutura precária e falta de
professores com formação especializada, as redes não conseguiram implantar uma
expansão curricular ampla e de qualidade.
Outro ponto fundamental da reformulação
paulista é a inclusão de duas aulas semanais de recuperação do 6º ao 9º ano
—nas escolas em tempo integral, serão quatro aulas nos 6º e 7º e duas nos 8º e
9º.
A pandemia causou impactos severos na
educação brasileira. No ano anterior à Covid, 20% das
crianças de 7 anos eram analfabetas; em 2022, o índice saltou para 40%,
segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad). Aulas de reforço
são urgentes para minimizar essa defasagem.
Mas ainda há aspectos que merecem atenção em
São Paulo. É preciso ampliar o ensino de tempo integral —45% das escolas do
estado seguem esse modelo, mas apenas 17% dos alunos estudam nelas. Os mais
vulneráveis, que precisam trabalhar, acabam empurrados para o ensino parcial ou
para evasão escolar, pois não conseguem cumprir uma carga horária extensa.
Por fim, é necessário ampliar a formação daqueles que não pretendem seguir carreira acadêmica. De cerca de 1,5 milhão de alunos no ensino médio paulista, somente 100 mil estão no ensino técnico, o que representa 7% —na OCDE, que reúne países mais desenvolvidos, a taxa média é de 44%.
‘El Loco’ no poder
O Estado de S. Paulo
Depois de uma campanha em que prometeu virar
a Argentina do avesso, Milei conquista uma vitória acachapante contra o
peronismo, mas terá de moderar seu tom se quiser governar
O anarcocapitalista Javier Milei, mais
conhecido como “El Loco”, chegou lá. Menosprezado pelo establishment político
da Argentina até o momento em que suas chances de se eleger pareceram reais, o
exótico azarão despenteado obteve uma vitória acachapante na disputa pela
presidência: foram 55,7% dos votos válidos, na maior derrota peronista em 40
anos, o que mostra que o país não estava tão polarizado assim. Mostra, isso
sim, que a maioria dos argentinos simplesmente se enfastiou com o peronismo
kirchnerista e, há décadas sem saber o que é prosperidade, resolveu fazer uma
aposta no que lhe pareceu absolutamente novo.
A questão é que esse novo talvez não seja tão
novo assim. Se no início da campanha Milei era o disruptivo da serra elétrica,
no segundo turno ele moderou o tom e conquistou o apoio da direita tradicional.
O ex-presidente Mauricio Macri, um autêntico representante das castas políticas
que o “libertário” jurou eliminar, subiu em seu palanque. E é dessa aliança que
dependerá o mínimo de governabilidade para Milei, cuja bancada puro-sangue no
Congresso será ínfima perto da oposição peronista. O provável – e esperado –
enquadramento de Milei não deixa de ser boa notícia. Qualquer resistência à
moderação traz a perspectiva de mais um presidente argentino deixando a Casa
Rosada em fuga, num helicóptero, para escapar da turba enfurecida, como
aconteceu com De La Rúa em 2001.
O resultado da eleição de anteontem não é
propriamente um repúdio ao populismo, pois Milei, malgrado seu ar novidadeiro,
é um populista clássico. Pelo contrário: a rejeição da chapa de centro-direita
no primeiro turno mostrou que os argentinos preferem mesmo o populismo, ainda
que seja com sinal trocado.
Em seu discurso de vitória, Milei declarou
que começava naquele momento o “fim da decadência argentina”. “Em 35 anos,
voltaremos a ser potência mundial”, prometeu o novo presidente. Pode até ser,
mas até lá Milei terá que resolver problemas bem mais imediatos – por exemplo,
como honrará o pagamento da imensa dívida da Argentina com o FMI, contraída,
aliás, por seu aliado Maurício Macri, em 2018. Recorde-se que foi o fracasso de
Macri em implementar reformas na Argentina que proporcionou o desastre da volta
do peronismo kirchnerista ao poder. Nada indica que o cenário será mais
favorável a Milei agora.
Não à toa, Milei reiterou seu projeto de
privatização de estatais, mas avisou que dependerá de reformas a serem
decididas pelo Congresso. Ao referir-se aos pivôs de sua prometida revolução
econômica – a dolarização total da economia, o corte incisivo da estrutura
administrativa e a eliminação do Banco Central –, preferiu falar no
“gradualismo” de tais mudanças. Mostrou-se, por fim, mais palatável a conversas
sobre o teor de seus projetos e o arranjo de cargos na administração com o
macrismo, outros segmentos da centro-direita e até com a facção peronista
avessa ao kirchnerismo.
De antemão, nenhum desses setores endossa os
pilares da anunciada política econômica de Milei. Tampouco aceitará, sem
elevadas concessões, a redução dos subsídios sociais e a revisão das relações
da Argentina com o Mercosul e com os governos do Brasil e da China,
hostilizados por Milei.
No próximo dia 10 de dezembro, Milei receberá
do peronista Alberto Fernández o bastão de comando da Argentina e uma herança
duríssima: inflação anual estimada em 200% neste ano, reservas internacionais
no chão, rombo nas contas públicas, recessão e penúria de mais de 40% dos
argentinos. Seu ensaio de moderação, ainda a ser confirmado, pode arrefecer,
momentaneamente, a sensação de que a Argentina caminhava para o apocalipse.
Neste momento, espera-se que o personagem insano que Milei criou para ganhar a eleição
fique do lado de fora da Casa Rosada, por mais que isso possa frustrar seus
eleitores mais exaltados, e que o novo presidente argentino seja capaz de
entender que seu governo tem escassa margem de manobra – e de erro.
A responsável resposta de um tribunal
O Estado de S. Paulo
Após escândalos contra sua imagem, a Suprema
Corte americana não culpou terceiros nem negou os fatos. Ministros redigiram um
código de conduta, mostrando que entenderam a causa do problema
No dia 13 de novembro, depois de uma série de
reportagens expondo casos de conflitos de interesse, os nove ministros da
Suprema Corte dos Estados Unidos publicaram um inédito código de conduta com
cinco postulados. O objetivo era “reunir em um só lugar as regras e princípios
éticos que norteiam a conduta dos membros do tribunal”.
São estes os postulados: (i) manter a
integridade e a independência do Judiciário; (ii) evitar a impropriedade e a
aparência de impropriedade em todas as atividades; (iii) cumprir os deveres do
cargo de forma justa, imparcial e diligente; (iv) apenas exercer atividades
extrajudiciais que sejam compatíveis com as obrigações do cargo judicial; e (v)
abster-se da atividade política. Em relação a cada um dos tópicos, os ministros
da Suprema Corte redigiram comentários concretizando as disposições.
Deve-se reconhecer que os postulados trazem
um conteúdo um tanto óbvio. Chega a ser curioso que, até agora, os membros da
Suprema Corte não tivessem tais obrigações por escrito, mas apenas o restante
da magistratura. “A ausência de um código levou, nos últimos anos, à falsa
compreensão de que os juízes da Corte, ao contrário de todos os outros juristas
deste país, se consideram livres de qualquer regra de ética”, disseram os
ministros da Corte constitucional americana.
No entanto, na história do código de conduta
da Suprema Corte dos EUA, mais do que o conteúdo em si do texto – que alguns
consideraram brando –, o importante foi a atitude dos ministros. Eles não
reclamaram das reportagens. Não se defenderam dos casos de escândalo dizendo
que realizam diariamente uma função importante em defesa do regime democrático
americano. Não disseram que a tradição da Suprema Corte era não ter um código
de conduta e que, mesmo em épocas mais conturbadas, não se havia recorrido a tal
instrumento.
Perante a crise de autoridade envolvendo o
tribunal, os nove ministros fizeram o que estava ao seu alcance. Não fingiram
que os escândalos não afetavam a imagem da Corte, tampouco culparam terceiros
pela crise. Há aqui um enorme aprendizado para o Judiciário brasileiro.
Vale ressaltar que, no Brasil, essas regras
já estão vigentes há muitos anos - e não apenas por força de um documento
assinado por 11 ministros. O Congresso aprovou a Lei Orgânica da Magistratura
(LOA, Lei Complementar 35/1979), que estabelece deveres e impedimentos para
todos os magistrados do País, incluindo os ministros do Supremo Tribunal
Federal (STF). Algumas resoluções do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) também
regulamentam e concretizam essas disposições. Ou seja, aqui, o problema não é a
falta de lei ou de alguma norma escrita.
No entanto, há uma enorme distância entre o
que a lei prevê e o comportamento de alguns membros do Judiciário,
especialmente o de alguns ministros do STF. Por exemplo, a Lei Complementar
35/1979 proíbe o magistrado de “manifestar, por qualquer meio de comunicação,
opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo
depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos judiciais,
ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do
magistério” (art. 36, III). Tal vedação simplesmente não é respeitada – e tudo
isso é encarado como algo normal.
Para piorar a situação – talvez aqui esteja a
grande lição proveniente da Suprema Corte americana –, os ministros do STF não
veem nenhuma relação entre seu comportamento desatento aos deveres do cargo,
para dizer o mínimo, e a crescente deterioração da imagem da Corte
constitucional. Tudo seria obra dos que não compreendem os deveres do STF ou de
quem não está satisfeito com a ordem constitucional de 1988.
Ora, falar fora dos autos, participar de
evento corporativo ou discursar em reunião política não tem nada a ver com o
arranjo institucional da Constituição. É simples atuação fora da lei, que
desmoraliza o STF perante a população. O exemplo da Suprema Corte americana
mostra que é possível outra atitude, de efetivo cuidado do tribunal. Basta
querer.
De novo, incentivo para montadoras
O Estado de S. Paulo
Volta do imposto de importação sobre veículos
elétricos é a reafirmação do protecionismo no setor
O governo federal deu fim à isenção da
cobrança de imposto de importação sobre veículos elétricos e híbridos. Com a
decisão, aprovada pela Câmara de Comércio Exterior (Camex), o tributo voltará a
ser aplicado a partir de janeiro. As alíquotas subirão gradualmente até
voltarem ao patamar de 35% em julho de 2026.
A intenção, segundo o Ministério do
Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (Mdic), é desenvolver a cadeia
automotiva nacional, acelerar o processo de descarbonização da frota e
contribuir para o projeto da neoindustrialização. Em outras palavras, o governo
acredita que a taxa vai incentivar a produção desses carros no País.
É o que sustenta a Associação Nacional dos
Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea). O incentivo, segundo a entidade,
afastava investimentos locais e, a partir de agora, a produção local de
veículos eletrificados vai se tornar realidade. A decisão, por outro lado, foi
muito criticada pela Associação Brasileira do Veículo Elétrico (ABVE), para
quem a medida vai derrubar as vendas de um mercado ainda incipiente para
atender ao lobby de empresas que defendem os combustíveis fósseis.
O governo poderia ter argumentado que a
isenção do imposto favorecia um mercado que hoje é basicamente voltado para o
consumidor de alta renda. Ou seja, em nome da sustentabilidade ambiental,
barateavam-se carros elétricos para quem já tem grande poder aquisitivo e, como
consequência, se reduzia a arrecadação federal, da qual dependem programas
sociais relevantes para os mais pobres. Assim, em tese, acabar com isenções
como essa seria uma forma de reduzir um pouco a enorme desigualdade no País –
ainda que, no caso específico da importação dos veículos elétricos, híbridos e
híbridos plug-in, o efeito disso seja muito limitado, pois em 2022 foram apenas
49,2 mil emplacamentos, o que é irrelevante no universo de 2,1 milhões de
veículos comercializados no mesmo ano em todo o País.
Mas não foi isso que o governo disse ao
justificar a medida. Beira a ingenuidade acreditar que as montadoras instaladas
no Brasil, em razão dessa medida, vão anunciar investimentos vultosos para
ampliar a produção de veículos elétricos e híbridos no País, como parece
esperar o governo. “Temos de estimular a indústria nacional em direção a todas
as rotas tecnológicas que promovam a descarbonização”, disse Geraldo Alckmin,
vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços,
ao anunciar a medida. Ora, se proteger a indústria local contra a concorrência
externa realmente funcionasse, o Brasil seria líder mundial na produção de
automóveis.
O setor automotivo é um dos poucos nos quais
o teto da alíquota do Imposto de Importação, de 35%, sempre foi aplicado.
Medidas adotadas por diferentes governos para proteger as montadoras no passado
recente não tornaram a indústria mais competitiva e reduziram a produtividade
do setor, exacerbando sua crônica dependência por subsídios.
A enorme ociosidade da indústria automotiva é
fruto desses erros, e a decisão tomada agora pela Camex se encaixa
perfeitamente entre eles. E se esse é o espírito da agenda de
reindustrialização que o governo Lula pretende implementar, é um péssimo sinal.
Milei quer nomes experientes, mas precisa de
articulação
Valor Econômico
Prevalecem dúvidas sobre a viabilidade das
propostas de Milei e, mais ainda, o ceticismo sobre sua capacidade de levá-las
à frente
Javier Milei provocou a maior derrota do
peronismo em 40 anos, deixou para trás os partidos liberais e de direita
tradicionais, para juntar-se a eles em posição dirigente no segundo turno, e
conseguiu chegar à Presidência da Argentina com 14,47 milhões de votos (55,7%),
contra o rival peronista Sergio Massa, com 11,5 milhões (44,3%). Milei recebeu
um inequívoco mandato das urnas para consertar a destruída economia do país,
com um programa radical que propõe a dolarização como centro e o fim da “casta
política” que governa o país. O primeiro encontra sérios obstáculos políticos
para sua consecução; o segundo é slogan eleitoral e faz parte do manual
clássico dos populistas.
A proeza da vitória de um outsider, que
construiu sozinho sua carreira e seu próprio partido há um par de anos, o
torna, paradoxalmente, o presidente politicamente mais fraco das últimas
décadas, ao menos de início. Sua força original, a da legenda A Liberdade
Avança, será a de 38 deputados em uma Câmara de 257 e de 7 membros em um Senado
de 72. Há um contraste enorme entre o radicalismo de seu programa e a
dependência de outras forças políticas.
O uso descarado de programas de assistência
feitos pelo governo para amparar Massa, ministro da Economia, e uma enorme
campanha de medo contra Milei - por atributos próprios o candidato era perfeito
para ensejar vários temores - foram ineficazes para deter a rejeição aos
peronistas e o desespero dos argentinos diante de mais uma grave crise
econômica a caminho, em que o sintoma mais evidente é uma inflação anual de
142,7%. Evitar a crise exige medidas drásticas, mas, sobretudo, apoio político.
O futuro presidente se move rapidamente para tentar expandir seu raio de ação
política.
Já no segundo turno, ao se aliar com Mauricio Macri e Patrícia Bullrich, candidata da união de direita Juntos pela Mudança, que obteve 23,5% (ou 6,5 milhões de votos) nas primárias obrigatórias, Milei moderou um pouco seu discurso. O eleitorado que sufragou Bullrich foi quase todo para o “anarcocapitalista”, assim como uma parte dos votos do peronista dissidente de Córdoba, Juan Schiaretti. Milei venceu com mais de 70% dos votos em Córdoba, em Mendoza e ganhou em todas as demais províncias, exceto Buenos Aires e Formosa.
Ontem Milei apresentou os dois primeiros
ministros de sua equipe, que terá 8 em vez de 18 pastas existentes. Boa parte
da equipe cogitada pela imprensa argentina vem dos quadros que foram do governo
de Macri. Milei suspendeu até a posse o anúncio de novos membros do governo,
enquanto realiza negociações com Patricia Bullrich, do PRO, partido de Macri,
que tem demandas a fazer.
Emílio Ocampo, o mentor da dolarização que
está na cabeça de Milei, ocuparia o Banco Central, se Milei mantiver o que
anunciou na campanha. Guillermo Francos, fundador do extinto Ação pela
República ao lado de Domingo Cavallo, o idealizador do “currency board”
executado durante o governo de Carlos Menem, poderá ser ministro do Interior e
articulador, pelo fácil trânsito político, especialmente entre os peronistas.
Como Menem fez a experiência mais próxima da dolarização que o país teve, Milei
sinalizou que terá como conselheiros quatro economistas que ocuparam cargos
naquele governo. Entre eles estaria o ex-presidente do BC Roque Fernández.
Uma das eminências pardas, a única nomeada no
discurso de vitória de Javier Milei, é Santiago Caputo, a quem atribuiu sua
vitória e um status no governo “equivalente” ao de sua irmã, Patricia, sem
especificar cargos. Santiago é sobrinho de Nicolás e Luiz Caputo, ambos
ministros das Finanças no governo Macri. Caputo estaria cotado para assumir as
negociações com o Fundo Monetário Internacional. Para o Ministério da Economia,
é apontado como favorito Federico Sturzenegger, presidente do BC na gestão
macrista. A equipe em formação não é amadora, algo que seria natural para um
outsider.
A grande influência de Macri se deve a sua
força no Congresso, que Milei não tem. As duas legendas unidas chegam a
alcançar pequena maioria na Câmara (têm 131 deputados) e 31 senadores. Resta
ver se esse bloco se solidificará ou se desmanchará à medida que Milei
implantar seu programa. Segundo Milei, há 90% de concordância entre os aliados
a respeito dele - mas os 10% restantes podem ser decisivos para a cisão. Macri
não vê com bons olhos nem a dolarização nem o fim do BC.
Fagulhas de detalhes, inexistentes na campanha, começaram a aparecer. Milei manterá as restrições cambiais e os vários tipos de câmbio por algum tempo, até “resolver” o problema da emissão monetária do BC para financiar o déficit público. Com isso, e depois a dolarização, ele acredita que a inflação estará baixa, próxima ao nível internacional, em 18 a 24 meses. Apesar da retórica contra o “gradualismo”, ele será necessário para preparar a economia para as mudanças radicais que pretende fazer. Prevalecem dúvidas sobre a viabilidade das propostas de Milei e, mais ainda, o ceticismo sobre sua capacidade de levá-las à frente. Como um político irascível, agressivo e acostumado a destruir pontes, não é visível, e talvez não exista, a faceta de que mais necessitará agora que chegou ao poder: a de hábil articulador político.
Antirracismo tem olhar para a saúde mental
Correio Braziliense
O governo federal destinará verba — R$ 8 milhões — para custear a formação de profissionais atuantes no campo psicossocial, a fim de atender mães e familiares de vítimas da violência
O governo federal investirá cerca de R$ 70
milhões em ações voltadas à igualdade racial, por meio de políticas públicas e
programas destinados à população negra do país. Ontem, o presidente Luiz Inácio
Lula da Silva assinou um conjunto de medidas proposto pelo Ministério da
Igualdade Racial e apresentado pela ministra Anielle Franco. Esse é o segundo
pacote de ações afirmativas, voltadas aos segmentos da sociedade, até então,
relegados a planos secundários ou invisibilizados ou excluídos das políticas públicas
nos últimos seis anos. Além dos negros, as medidas alcançam ciganos,
quilombolas e fazem interface com a educação e a cultura, indicando maior
interatividade com diferentes órgãos federais.
A violência contra negros, quilombolas e
indígenas ganha dimensão inédita. Pela primeira vez, o governo federal
destinará verba — R$ 8 milhões — para custear a formação de profissionais
atuantes no campo psicossocial, a fim de atender mães e familiares de vítimas
da violência. A fase experimental será desenvolvida na Bahia e no Rio de
Janeiro, com o apoio de cinco universidades federais — Bahia, Fluminense, São
Paulo, Ceará e Rio de Janeiro. Bahia e Rio de Janeiro têm se destacado pelos
frequentes confrontos entre forças de segurança pública e integrantes das
organizações criminosas que deixam sequelas em famílias que vivem nas áreas de
embates.
O maior volume de dinheiro — R$ 20 milhões — será direcionado à Política Nacional de Gestão Territorial e
Ambiental Quilombola (PNGTAQ). A proposta conquistou a adesão dos estados da
Bahia, do Maranhão, do Piauí e de Tocantins, que, juntos, abrigam 1.875
comunidades certificadas, equivalentes a 51% das 3.669 comunidades espalhadas
por todo o país. Beneficiará também as comunidades tradicionais de matriz
africana por meio de ações que envolvem vários ministérios que fazem interface
com as demandas desses setores da sociedade. Quilombolas e ciganos têm,
historicamente, sido alvo da violenta disputa pela terra no país — o mesmo que
ocorre com agricultores familiares e povos originários.
O Programa Federal de Ações Afirmativas
(PFAA) contará com R$ 9 milhões. Além de privilegiar interseções e
transversalidades com diferentes órgãos de governo, inova com o Plano Nacional
de Comunicação Antirracista, voltado ao fortalecimento de mídias negras e
promoção da diversidade racial por meio da publicidade. A finalidade é dialogar
com a sociedade, que despreza, oprime e agride pretos e pardos. As agressões
verbais, a exemplo do que ocorre jogos de futebol, e físicas são demonstrações
de repulsa a negros e indígenas. Algo incompatível com a formação do povo
brasileiro, que se caracteriza pela diversidade e pluralidade étnica-racial, em
que os afrodescendentes somam 56% da população.
O PFAA incluirá, em parceria com o Fundo das
Nações Unidas para a Infância (Unicef), as ações antirracista a primeira
infância, a fim de reduzir o impacto negativo dos atos racistas direcionados
contra crianças negras, quilombolas e indígenas. Para isso, capacitará
profissionais da saúde, da assistência social e da educação.
As iniciativas do governo federal se mostram positivas à enorme parcela dos povos afro-brasileiros, originários e tradicionais, sobretudo ao dar destaque aos aspectos educacionais. Mas é preciso que essas políticas de reparação e focadas na educação em toda a sua extensão se torne política de Estado. Sem uma boa formação, o Brasil plural e diverso conviverá com o improcedente racismo que fere e mata.
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