Folha de S. Paulo
Debate sobre a defesa do sistema pondera
quais os mecanismos de defesa de que dispomos para evitar o pior
É uma velha e difícil questão: como é que uma
democracia se defende de partidos ou candidatos antidemocráticos? Permitindo
que eles existam e possam vociferar as suas mensagens?
Ou banindo esses dois espécimes para que o
sistema não seja alvo dos seus ataques —e, no limite, destruído por dentro?
O cientista político Jan-Werner Mueller, em artigo para a Project
Syndicate, regressa a essa questão. Com Donald Trump nos Estados
Unidos e a Alternativa para a Alemanha (AfD) na Alemanha, as
democracias questionam quais os mecanismos de defesa de que dispõem para evitar
o pior.
Para Mueller, a solução não está em banir os partidos em questão —nos Estados Unidos, por exemplo, isso significaria banir o Partido Republicano, que é hoje o partido de Trump. Um ato suicidário do próprio sistema democrático, que passaria a ser um sistema de partido único.
Talvez a solução esteja em barrar
individualmente quem o sistema considera perigoso ou nefasto, permitindo assim
que os partidos escolham outras lideranças.
No fundo, Jan-Werner Mueller está aberto à
ideia de "democracia militante" de que falava Karl
Loewenstein. Contemplando a forma como os nazistas
chegaram ao poder, o filósofo alemão entendia que as democracias, às vezes,
têm de combater o fogo com fogo.
Ou, em termos menos metafóricos, têm de
combater os antidemocratas com as mesmas armas, usando a força se necessário.
Entendo o argumento de Jan-Werner Mueller.
Não subscrevo a admiração que ele sente pelo conceito de "democracia
militante", que me parece assentar em dois equívocos —um histórico, outro
filosófico.
O equívoco histórico está na ideia simplória
de que Hitler chegou ao poder por meios estritamente democráticos.
Parcialmente, é verdade: os nazistas venceram as três últimas eleições da
República de Weimar.
Mas a subida ao poder também se explica pelo
clima de intimidação a que os nazistas submeteram a Alemanha —e, pormenor
fundamental, pela rendição abjeta das elites conservadoras do país, que se
aliaram a um gângster por pensarem que o poderiam controlar.
A traição da democracia, na Alemanha, não
veio apenas das massas; veio das elites —políticas e também econômicas.
Entregar às elites as chaves de quem entra no clube, como Loewenstein defendia,
é uma proposta historicamente duvidosa.
Entenda: não me repugna que uma sociedade
estabeleça, na sua lei fundamental, os valores que defende e dos quais não
abdica.
Se, por exemplo, a constituição proíbe
discursos que incitam ao ódio racial, caberá depois aos tribunais superiores
proibir partidos ou candidatos que praticam esse esporte.
Coisa diferente é haver um comitê de sábios
que decide, de forma casuística, quem pode ou não participar no jogo. Uma vez
mais, seria a democracia a suicidar-se com estrondo.
Por último, há um equívoco filosófico: a
democracia só sobrevive num país de democratas. No limite, é indiferente saber
se as leis ou as instituições são robustas e decentes. A questão é pré-política
e lida com a educação de um povo para as virtudes democráticas.
Se a maioria não possui essas virtudes,
desprezando a liberdade, o pluralismo, o compromisso e a civilidade, a
manutenção da democracia será tão improvável como a manutenção de uma ditadura
onde a maioria as tem em excesso.
O governo é sempre do povo. Mesmo quando não
é por ele e para ele.
*Escritor, doutor em ciência política pela
Universidade Católica Portuguesa
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