O Globo
O Brasil é uma grande Andrelândia,
aprisionado em modelo binário (e eventualmente paradoxal)
Andrelândia é uma cidadezinha do Sul de
Minas, daquelas que poderiam perfeitamente ser o cenário de uma bucólica novela
das 7 (no tempo em que novelas das 7 eram bucólicas). O casario colonial se
espalha, como as contas de um rosário, em torno da Igreja Matriz de Nossa
Senhora do Porto da Eterna Salvação (é assim que o hino municipal descreve a
enorme praça ovalada, mais parecendo uma nau) no centro histórico daquela que
um dia foi a Vila Bela do Turvo.
A meio caminho entre Ibitipoca e São Thomé das Letras, Andrelândia não ostenta a natureza intocada de uma nem os toques sobrenaturais da outra. Mas tem algo que a faz única: um bipartidarismo próprio, que — para o bem e, principalmente, para o mal — sobreviveu aos mais de 150 partidos políticos da nossa História.
Nas cédulas e nas urnas eletrônicas, as
siglas podiam ser UDN, PR, PL, PSD, PTB, PCdoB, MDB,
Arena, PSDB,
Novo, PT;
na cabeça do eleitor, o voto seria nos veados ou nos caranguejos.
Esta é outra peculiaridade, e remonta ao
século XIX, quando um grupo se insurgiu contra a hegemonia do Partido Liberal e
fundou o Partido Republicano do Turvo. Os eleitores do primeiro,
tradicionalistas, perderam terreno. Andaram para trás, viraram caranguejos. Os
do segundo, dando saltos adiante, se autodenominaram veados — e desde então
Andrelândia deve ser o único lugar em que esse termo tem uma acepção
ideológica.
Emulando as mesquinharias da política
nacional (em que Bolsa Família vira Auxílio Brasil para depois voltar ao nome
original — que já era um rebranding dos vários programas de transferência de
renda de outro governo), as obras dos veados eram abandonadas nas
administrações dos caranguejos, e vice-versa. Como a resultante das forças dos
que saltavam para a frente e dos que andavam para trás é nula, a cidade
estagnou.
O Brasil é uma grande Andrelândia,
aprisionado no modelo binário (e eventualmente paradoxal) em que se muda o
rótulo, mas os ingredientes permanecem os mesmos. Lá, os veados — outrora
reformadores — se acomodaram no PMDB; e foram os tucanos que acolheram os
conservadores caranguejos. Mais ou menos como, noutra escala, os
“progressistas” defendem estatização, protecionismo, censura — enquanto
“reacionários” propõem liberalismo econômico (e um golpe de Estado, de vez em
quando).
O mais ilustre dos andrelandenses, o
historiador José Murilo de Carvalho (ocupante por quase 20 anos da cadeira 5 da
Academia Brasileira de Letras) escreveu que os quatro pecados capitais do
Brasil eram a escravidão, o latifúndio, o patrimonialismo e o patriarcalismo.
Poderia ter incluído um quinto: o maniqueísmo. Esse que faz com que, em 2024,
ainda sejamos divididos entre fascistas e comunistas — categorias do início do
século XX, ressuscitadas como espantalhos.
Nesta semana, o apresentador Luciano Huck foi
xingado no Xuíter por compartilhar um artigo pró-democracia. Como se sabe, só
quem é esquerdista desde criancinha pode — mesmo apoiando ditaduras e
terroristas — se considerar um humanista, um democrata.
É o mal de pertencer a uma fauna limitada a
cervídeos e crustáceos, que insiste em negar a diversidade, a nuance, a
complexidade, a possibilidade de convergência.
Quem souber como superar o estágio de veados x caranguejos em Andrelândia talvez tenha a chave para destravar o Brasil.
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