quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Maria Cristina Fernandes - Devassa à vista e âncora em movimento

Valor Econômico

Lira não contará com mercado se resolver incendiar relação com Executivo

O presidente da Câmara dos Deputados foi o único personagem da política com cadeira cativa nas três últimas edições da conferência anual do BTG. Este ano, Arthur Lira não apareceu. O BTG informa que o deputado foi convidado mas não pôde comparecer. A julgar pela recepção que o presidente do Conselho de Administração do banco deu ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, a ausência de Lira não inquietou o setor com o qual estabeleceu fina sintonia ao longo de seu mandato na mesa da Câmara.

“Havia uma certa dúvida daquilo que a gente podia esperar, seja do governo, seja do ministério, seja da política, seja das relações institucionais. E agora, doze meses depois, esta casa cheia é sinal de seu prestígio; sob sua liderança a economia do país foi tocada com transparência, bom senso, seguindo as melhores práticas que funcionam em todos os lugares do mundo com diálogo com a política, com o mercado, com o setor real da economia. Hoje posso garantir que todos os presentes se sentem tranquilos e seguros de ir em frente com seus investimentos pela maneira como o senhor liderou a economia ao longo desses 12 meses”, disse André Esteves.

O encontro foi um sinal de que, no maremoto que se avizinha na Câmara, Lira não poderá contar com esta âncora como o fez nos tempos do “kit robótica”. O gestor do BTG estendeu o tapete vermelho a Haddad no mesmo dia em que o deputado ameaçou o governo no discurso com o qual abriu os trabalhos da Câmara.

Ao longo da campanha de 2022 e do primeiro ano do governo Luiz Inácio Lula da Silva, a presença de Lira no comando de uma Casa de maioria conservadora foi saudada como a garantia do mercado de que o PT não faria desandar o país. Não é mais. Mesmo quem, no sistema financeiro, ainda vê em Lira um anteparo para o apetite arrecadatório do governo e teme sua expansão na regulamentação da reforma tributária, está de acordo que o presidente da Câmara passou da conta.

Se há alguma dúvida de que Esteves representa a turma, compare-se o discurso de 2018 de Luis Stuhlberger em defesa do Centrão - “Esse Congresso vale pelo menos para o Executivo não fazer uma grande besteira. Tem uma certa blindagem" - com o de hoje. Este ano, o gestor do Verde já não parece ver tanta necessidade de blindagem: “Enquanto Lula for chefe de Estado e Haddad, na prática, for o chefe de governo... [Haddad] é uma pessoa boa, consciente, pode não pensar igual à gente, mas é responsável, tem boas ideias [...] é um governo razoável”.

Se o mercado deixou de ser a âncora de Lira é dela que Haddad se vale para ter certeza de que, ao destampar o pântano do programa de incentivos a eventos, o Perse, não levará Lira a implodir o país. Da interlocução com o topo da pirâmide, o ministro tira a certeza de que a aposta é pela decolagem do país, cenário que seria inviabilizado pela concretização das ameaças.

Na equação montada pela Fazenda para desarmar a reação ao desmonte do bilionário mercado de renúncias fiscais, o que ainda não está muito claro é a extensão dos sócios, no Congresso, dos desvios desses recursos. Os primeiros achados da Receita indicam que um programa criado para compensar os prejuízos do setor com a pandemia e previsto para custar R$ 4 bilhões em incentivos só chegou a R$ 17 bilhões graças a fraudes e à lavagem de dinheiro. Identificou-se, por exemplo, um shopping center que dedicava 4m2 a uma apresentação musical por semana, e, com isso, tornou-se beneficiário das isenções do programa. Constatou-se ainda que eventos com previsão de público de 100 mil pessoas (e auxílio correspondente) só reuniram quatro mil.

Haddad acredita no poder de “constrangimento” da política, ou seja, que o esclarecimento do maior número de pessoas sobre o que é “certo” constrange aqueles que fazem “errado”. O risco é o de que os prejudicados se unam e passem a bloquear permanentemente o governo.

Por desabrido, espera-se que o enfrentamento do Perse tenha submetido os riscos a régua e compasso. Calcula-se um núcleo duro de beneficiários. Os sócios do butim não afetariam o quórum (des)qualificado. A troca do colégio de líderes da Câmara poderá dar uma ideia do quanto o pêndulo se move. Os movimentos do PSB indicam que o partido se antecipou à devassa. Deixou o bloco comandado pelo presidente da Câmara e trocou o líder, Felipe Carreras (PE), autor da medida que instituiu o Perse. O PDT está no mesmo caminho. No PT, a troca de Zeca Dirceu (PR) por Odair Cunha (MG) só fortaleceria Lira, e, por isso mesmo, ainda não está definida.

O poder de atração de um presidente da República num ano eleitoral não se mede apenas pela liberação de emendas. Com a decisão de permanecer mais no Brasil este ano, Lula já começou a viajar levando a tiracolo lideranças que até outro dia orbitavam em torno de Lira. É um código de prestígio para os parlamentares fazerem crer que têm acesso ao presidente.

Isolar um presidente da Câmara que ainda tem um ano no cargo é sempre um risco, ainda por cima quando se avalia que os potenciais atingidos pela devassa não caiam sozinhos. Não há, porém, mesmo no seu entorno, quem não veja a rota de Lira se afunilar. O presidente da Câmara não quis apenas evitar a maldição de antecessores, como Ibsen Pinheiro (MDB) ou Eduardo Cunha (PTB). Se nunca lhe passou pela cabeça voltar à planície, como Arlindo Chinaglia (PT), poderia ter trabalhado para virar ministro, como Aldo Rebelo (PDT), até a disputa pelo Senado em 2026, sobre a qual já havia acordo com o governo.

Lira quis mais. Não se satisfez com Turismo e Esporte de porteira fechada. Nem com metade das diretorias da Caixa Econômica Federal. Saiu a assinar de próprio punho requerimento de informações à Pasta da Saúde para constranger o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, ousadia de que nem Cunha foi capaz. Acreditou ainda que pudesse instalar cizânia no governo ao prestigiar o ministro da Casa Civil, Rui Costa, em detrimento de Haddad. E ainda fez do Perse um cavalo de batalha. Quis, enfim, controlar sua sucessão para continuar a mandar na Câmara, façanha de que nenhum antecessor foi capaz. A esta altura, terá sorte se apenas sair desta menor do que entrou.

 

2 comentários:

ADEMAR AMANCIO disse...

Cadê os comentários?

hisayo nanami disse...

Texto límpido e brilhante como a pepita d'ouro encontrada na sede do PL.
Perfeito.

Desta vez é Lira que pega fogo enquanto Lula observa os aplausos de Roma.