quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Maria Clara R. M. do Prado* - Legislativo e Executivo não se confundem

Valor Econômico

Legislativo quer ter o direito de administrar os recursos federais sob o manto da impunidade pela má aplicação do dinheiro público. Sem prestar contas à sociedade, os parlamentares fazem uso paroquial de emendas ao orçamento

Por trás da chantagem e das ameaças do Congresso Nacional para garantir a gestão de crescentes fatias do orçamento da União, o que se vê é um movimento de usurpação de poder. O Legislativo, afeto à tarefa de confecção das leis, quer decidir onde aplicar os recursos originários da arrecadação fiscal e da captação via endividamento público, atribuições típicas do Executivo. Tenta fazer isso no conforto das situações obscuras em que valem os benefícios, mas não as penalidades. Quer ter o direito de administrar os recursos federais sob o manto da impunidade pela má aplicação do dinheiro público.

Sem prestar contas à sociedade, os parlamentares fazem uso paroquial das inúmeras emendas adicionadas ao orçamento sob a alegação de que, por serem próximos ao eleitorado de suas regiões, estariam mais aptos a decidir onde deve ser aplicada a verba do orçamento federal. Nada mais equivocado.

As políticas públicas dos municípios são definidas pelas prefeituras, com a aprovação das câmaras municipais. Representam os poderes mais próximos dos interesses locais da população. Aos governos estaduais cabe definir e implementar as políticas públicas no âmbito dos Estados, com a aprovação das assembleias legislativas. As políticas nacionais, de abrangência geral, estão a cargo do governo federal. Parece óbvio, mas precisa ser enfatizado.

A questão não é nova. Voltou a ganhar relevância esta semana após a insatisfação do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), com o corte de R$ 5,6 bilhões efetuado pelo presidente da República na verba das emendas de comissão no orçamento de 2024. Mesmo assim, o montante continua significativo, da ordem de R$ 11 bilhões, bem acima dos R$ 7,5 bilhões de 2023. Esse é o único campo no reduto das emendas parlamentares no qual o Executivo pode mexer. Os demais tipos, individual e de bancada, são impositivos, com gastos de R$ 25 bilhões e de R$ 11,3 bilhões, respectivamente.

As emendas individuais obrigatórias acolhidas pelo relator do orçamento destinam-se em boa parte a despesas relacionadas com a saúde. É isso o que diz a norma que introduziu a prerrogativa das emendas parlamentares. Para uma mínima organização na alocação dos recursos abocanhados pelos parlamentares, o Ministério da Saúde criou um aplicativo que se chama “emenda parlamentar - MS”. Complementa a Cartilha das Emendas Parlamentares PLOA 2024 do Fundo Nacional de Saúde. Procura evitar desperdícios e má aplicação de dinheiro no setor.

Uma vista d’olhos no Avulso de Emendas do Projeto de Lei Orçamentária para 2024 - PLN 29/2023 - da Comissão Mista de Planos, Orçamento Público e Fiscalização do Congresso mostra que depois dos gastos na área da saúde, a segunda maior fonte de recursos usada pelos parlamentares em suas emendas individuais é a rubrica do orçamento destinada às transferências a Estados, Distrito Federal e municípios, supervisionada pelo Ministério da Fazenda. Aqui, a destinação do dinheiro não poderia ser mais genérica.

“Desde 2019, a transferência de recursos da União para Estados e municípios por meio das emendas parlamentares individuais impositivas pode ser realizada na forma de Transferência Especial que dispensa a necessidade de convênios ou instrumentos congêneres. Assim, a partir da transferência, os recursos pertencem ao ente beneficiado, e cabe ao município ou Estado decidir sobre a aplicação desses recursos, obedecida a legislação orçamentária e de licitações e contratos”, justifica o deputado Keniston Braga (MDB-PA) na emenda nº 44040001 que aloca R$ 10,4 milhões daquela fonte de recursos ao Pará. Com os mesmos termos e fonte, ele destina R$ 6.685.792,00 por via de outra emenda, de nº 44040002, para o seu Estado. Não há especificação das modalidades de aplicação do dinheiro.

O deputado Afonso Hamm (PP-RS) incluiu no orçamento deste ano uma emenda que destina R$ 100 mil à Associação Brasileira de Criadores de Cavalos Crioulos, em Pelotas, com vistas a “apoiar a realização de exposições e feiras agropecuárias como forma de estimular o desenvolvimento agropecuário regional”. Entre outras emendas, ele patrocinou uma proposta (20980001) no valor de R$ 16.185.585,00 da rubrica das transferências a Estados e municípios para atender de forma genérica os municípios do Rio Grande do Sul.

No mesmo contexto, o deputado André Janones (Avante-MG) destina R$12.885.792,00 da rubrica das transferências para a “melhoria dos municípios de Minas Gerais” (emenda nº 39140001). Também o deputado Aécio Neves (PSDB-MG), com dinheiro da mesma fonte, alocou R$ 9,350 milhões por meio da emenda 13490007 para implementar investimentos e custeio em diversas cidades de Minas Gerais, “melhorando assim a qualidade de vida da população”. Nenhuma cidade é ali designada.

Há de tudo. O deputado José Guimarães (PT-CE) patrocina emenda (nº 24420016) no valor de R$ 150 mil com dinheiro do orçamento do Ministério da Defesa para a aquisição de instrumentos musicais e mobília das salas de ensaio do 23º Batalhão de Caçador, de Fortaleza, além de outra (nº 24420015) que destina R$ 8.435.792,00 com dinheiro da rubrica das transferências para o custeio e investimento no Ceará, sem especificações. O próprio deputado Arthur Lira é autor, entre outras, de emenda (nº 27260001) no valor de R$ 10 milhões com verba do Ministério do Turismo para “projetos de infraestrutura turística nos municípios de Alagoas”. Não se conhece detalhes.

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