O Globo
Os 60 anos da deposição do presidente João
Goulart são um bom pretexto para lembrar o papel de diplomatas que tiveram
papel relevante naqueles dias
Os 60 anos da deposição do presidente João
Goulart são um bom pretexto para lembrar o papel de dois diplomatas americanos
que tiveram papel relevante naqueles dias. Um é Lincoln Gordon, o professor de
Harvard que o presidente John Kennedy mandou para o Brasil em 1961 como seu
embaixador. Falava muito, sempre. Adquiriu tamanha proeminência que o
jornalista Otto Lara Resende propôs: “Chega de intermediários, Gordon para
presidente.”
O outro é Thomas C. Mann, ex-embaixador no
México e secretário de Estado adjunto a partir de dezembro de 1963. Esteve em
todas: na armação do golpe que derrubou o presidente da Guatemala em 1954, foi
uma das molas do desembarque de tropas americanas na República Dominicana, em
1965, e deixou digitais nos golpes do Brasil e da Bolívia. Atribui-se a ele o
que seria a Doutrina Mann de apoio a governos militares na América Latina.
Falava pouco.
Mann era um texano conservador e resolvido. Os liberais detestavam-no e a recíproca era verdadeira. Gordon era um liberal atormentado e os dias de 1964 fizeram dele uma figura trágica. Morreu em 2009, aos 96 anos, repetindo que, ao colaborar com a queda de Jango, não preconizava a ditadura. De fato, condenou-a, mas ninguém o ouvia.
Na sua cerimônia fúnebre, a filha Anne lembrou: “Apesar de ter sido um democrata progressista que apoiou o New Deal de Franklin Roosevelt, (....) na minha opinião seu antagonismo diante dos movimentos reformistas de esquerda, foi imediatista e acabou prejudicando o povo da região.”
Gordon, o liberal trágico
Gordon saiu da cepa de liberais da Costa
Leste dos Estados Unidos. Seu nome completo era Abraham Lincoln, marca da
origem judaica da família de imigrantes russos. Aluno brilhante de Harvard,
ganhou bolsas para temporadas na Europa. Em 1941, com a entrada dos Estados
Unidos na guerra, colaborou na adoção de um novo veículo militar, o Jipe.
Terminada a guerra, Gordon esteve no coração
do Plano Marshall, que ajudaria a recuperação econômica da Europa. Era o maior
time de craques que a elite americana produziu. Todos bem educados,
autoconfiantes e liberais.
Em 1961 eles voltaram ao poder com o
presidente John Kennedy e Gordon ganhou a embaixada no Brasil. Com a memória do
Plano Marshall, ele ajudou a conceber a Aliança para o Progresso, um programa
de ajuda a reformas sociais na América Latina. Elas seriam uma resposta ao
fascínio gerado pela revolução cubana do guerrilheiro Fidel Castro.
Ia tudo muito bem, até que Gordon passou a
desconfiar do presidente João Goulart. Temia que Jango marchasse para a
esquerda e para um golpe.
No dia 30 de julho de 1962, quando o
presidente Kennedy começou a operar o grampo das conversas em sua sala de
trabalho, Gordon foi a primeira vítima. Pediu que fosse reforçada sua equipe
militar e recomendou que se jogassem alguns milhões de dólares para influenciar
as eleições brasileiras.
Nessa conversa de meia hora, pela primeira
vez, falou-se na deposição de Jango. Ela veio de Richard Goodwin, jovem
assessor de Kennedy:
“É bem provável que tenhamos de pedir a eles
(os militares brasileiros) que tomem o poder lá pelo fim do ano.”
O tema não prosperou, mas Gordon alarmava-se
com Jango. Em agosto de 1963, Thomas Hughes, o diretor de pesquisas do
Departamento de Estado, condenou seu alarmismo, sustentando que Goulart era um
reformista.
Em outubro, o Brasil caiu de novo na roda e
Kennedy levantou a possibilidade de uma ação direta dos Estados Unidos, mas
Gordon descartou-a. Contudo, dias depois, o embaixador pediu um plano de
contingência militar para o Brasil. Ele resultaria mais tarde na Operação
Brother Sam. Incluiu o porta-aviões Forrestal e petroleiros, sem tropa de
desembarque. Tratava-se de “mostrar a bandeira”, mas não foi necessário, e o
Forrestal voltou para o alto mar no dia 3 de abril.
Jango, seu dispositivo militar e suas bases
sindicais ruíram como um castelo de cartas.
Gordon sustentou por décadas que chegou à
embaixada pouco depois das nove da manhã do dia 31 de março, sem saber do
levante do general Mourão Filho. Vá lá.
Quatro dias antes ele pediu que a frota fosse
colocada de prontidão porque Jango radicalizava e “se ele for bem-sucedido, é
mais do que provável que o Brasil caia sob pleno controle comunista.”
Um telegrama da CIA, do dia 30 de março,
avisou que o golpe viria nos próximos dias. À noite o secretário de Estado Dean
Rusk avisou ao presidente Lyndon Johnson, que estava no Texas:
“Tive uma reunião com Tom Mann e um grupo
daqui, incluindo a CIA (Agência Central de Inteligência), sobre a situação
brasileira. A crise vai chegar ao auge nos próximos um ou dois dias, talvez até
mesmo de hoje para amanhã.”
Pouco depois Johnson avisou ao secretário de
imprensa que deveriam voltar para Washington.
Thomas Mann, o conservador resolvido
Tom Mann, um texano de Laredo, tinha 52 anos.
Era o embaixador no México no dia 22 de novembro de 1963, quando o presidente
John Kennedy foi assassinado e assumiu o vice Lyndon Johnson, também texano e
seu amigo.
Johnson resolveu colocá-lo na chefia da
diplomacia americana para a América Latina. Essa escolha marcou o primeiro
racha com a equipe deixada por Kennedy. Tentaram barrá-lo, em vão.
Quando os militares brasileiros se rebelaram,
o governo de Johnson abriu a pasta e seguiu o roteiro pedido por Gordon e
deixado por Kennedy.
Mann fez isso com fé. Em março ele já havia
reunido os embaixadores americanos da região, dizendo-lhes que deviam parar de
maltratar os militares, pois as prioridades da Casa Branca deviam ser a defesa
do patrimônio das empresas americanas e o combate ao comunismo. Mann já havia
dito a Johnson que Jango era “um irresponsável”.
Às 11h46m do dia 31 de março, a pouca tropa
do general Mourão Filho continuava no quartel e ele se preparava para almoçar e
dormir a sesta. Em Washington, Dean Rusk discutia com Mann o apoio americano e
a formação de uma equipe para trabalhar num apoio de emergência ao Brasil
depois do golpe.
Com Jango deposto, Mann ligou para Johnson:
— Espero que o senhor esteja tão feliz como
eu a respeito do Brasil.
— Estou. Respondeu o presidente.
— Eu acho que foi a coisa mais importante que
aconteceu no hemisfério em três anos. Acrescentou Mann.
Em tempo: Johnson nunca acreditou que Lee
Oswald tivesse sido o assassino solitário de Kennedy. Em pelo menos duas
ocasiões, disse que “ele tentou pegar Fidel e Fidel pegou-o.”
Em novembro de 1963 Mann era o embaixador no
México, por onde Oswald havia passado, tentando conseguir um visto para Havana.
Ele acreditava na conexão cubana e incentivou a investigação, até que o
Departamento de Estado disse-lhe que abandonasse o caso: “Foi a experiência
mais estranha da minha vida”, disse a um senador que era grande amigo de
Johnson, havia sido membro da comissão que investigara o crime e também não
acreditava no atirador solitário.
Serviço:
Estão na rede, em inglês, dois livros. Um, rico, com a vida de Gordon e outro sobre um aspecto lateral de Mann. Um é “Lincoln Gordon”, de Bruce Smith e o outro é “Thomas C. Mann”, de Thomas Allcock.
3 comentários:
Muito bom e informativo! Mais um colunista "antiliberal, antiamericano e anticapitalista"??
■Muito bom e informativo. Este, como todos sabem, é um colunista claramente defensor do Liberalismo e assimilado, como eu, ao único modo de produzir e reproduzir a realidade vigente, o Capitalismo, independentemente de eu ou ele termos críticas ao Modo de Produção de nosso tempo, porque teríamos críticas ao Modo de Produção que vigesse e teríamos isenção para fazê-lo, como temos.
■Eu não estou aqui para babaquisses e o autor, Elio Gaspari, também não.
O homem sabe tudo tudo sobre aquele período.
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