Folha de S. Paulo
País tem superávit com arrocho feroz, que não
vai durar sem plano econômico e político
Pela primeira vez, desde 2011, o governo
da Argentina conseguiu
gastar menos do que arrecada e ainda pagar a conta de juros em um
bimestre. Teve
superávit primário e nominal.
Javier Milei conseguiu
tal façanha provisória porque, grosso modo, arrochou de modo feroz o valor de
aposentadorias e pensões, de salários de servidores e de benefícios sociais.
Em relação ao primeiro bimestre de 2023, a despesa com Previdência caiu 31% em termos reais —isto é, além da inflação. O gasto com servidores, quase 12%. Somadas as despesas com Previdência (aposentadorias, pensões) e com benefícios sociais (como "bolsas" para famílias), a baixa foi de 24%. Cerca de 60% da redução de despesa veio daí. É o que se pode calcular das estatísticas fiscais até fevereiro.
Note-se ainda que a receita de impostos na
Argentina é maior no primeiro semestre, por causa da agricultura. No segundo
semestre, vai ser mais difícil.
Outro corte de despesas veio do congelamento
do gasto com obras públicas e de cortes de transferências para as províncias
(estados). Parte menor veio da redução dos de fato disparatados subsídios. A
taxa básica real de juros é negativa. É insustentável.
Se um povo qualquer aceita o sufoco por tempo
bastante ou é também reprimido com violência estatal, fica mais fácil de fazer
o que se chama de "ajuste fiscal", embora nem mesmo repressão seja
suficiente.
A inflação para o consumidor está em 276% ao
ano. Depois de um tombaço em 2023, a média
dos salários continua derretendo, com baixa anual de uns 20% em termos
reais. O arrocho fiscal e uma recessão feia devem ajudar a baixar um pouco a
carestia até o final do ano.
Isso se a taxa de câmbio continuar
relativamente comportada. Do final do governo peronista até agora, o dólar
ficou uns 124% mais caro. A inflação somada de dezembro a fevereiro foi de
71%.
Se
ficar pela casa de 10% ao mês até maio, será então necessária uma outra
desvalorização do peso a fim de incentivar exportações e conter importações —o
país precisa de dólares.
As exportações sobem por causa do agro, que
ressuscitou da seca mortífera, e do setor de energia; as importações são
contidas de resto por causa da recessão horrenda.
O ajuste argentino por ora não passa de um
arrocho. Algum arrocho haveria, de qualquer modo. Por ora, o ajuste de Milei
depende da disposição dos inocentes de padecerem calados.
Para fazer um acerto duradouro
("sustentável"), é preciso arrumar fontes de financiamento estáveis
(impostos e empréstimos de um mercado de dívida pública a custo tolerável).
Fazer "reformas" (administrativa, previdenciária). Acabar com os
controles de capitais (de entrada e saída de dólares) e ajeitar a economia de
modo que o país volte a crescer de modo regular. Etc.
Nada disso aparece no horizonte. Menos ainda
se sabe o que fazer do povo arrebentado, se alguém se importa. Ainda não há
plano organizado de estabilização econômica ou meios políticos de aprovar e
implementar um tal programa.
Milei deu tapas na cara da centro-direita que
aceitaria negociar um plano duro de ajuste e reforma econômica, botou fogo no
parquinho da Casa Rosada e vai às redes discutir coisas como tamanho de canis.
Tenta evitar que seu decretaço de refundação
nacional, uma mega medida provisória, caia de vez (já foi derrubado no Senado,
mas apenas caindo na Câmara deixa de valer). Por risco de derrota, retirou do
Congresso sua lei geral de reforma ("omnibus").
Agora, quer firmar um "pacto
nacional" em maio, quando faria concessões a fim de aprovar a
"omnibus". O pacto é basicamente uma lista de princípios de redução
do Estado. Anos de desespero vão fazer com que o povo aguente o arrocho calado,
na esperança de melhora?
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