quarta-feira, 20 de março de 2024

Bernardo Mello Franco – Crime sem castigo

O Globo

Juiz citou "legítima defesa" ao livrar policiais que balearam e arrastaram faxineira no asfalto

Numa manhã de domingo, Cláudia Silva Ferreira saiu de casa com R$ 6 para comprar pão. Era seu dia de folga com as crianças. Durante a semana, ela acordava às 4h30 e dava duro num hospital. Com o salário de faxineira, desdobrava-se para criar quatro filhos e quatro sobrinhos.

A caminho da padaria, foi atingida por tiros disparados pela PM. A pretexto de socorrê-la, os agentes a jogaram no porta-malas e partiram em disparada. O bagageiro se abriu, e o corpo da mulher negra, de 38 anos, foi arrastado pelo asfalto em alta velocidade. Apesar dos alertas desesperados de motoristas e pedestres, a viatura levou 350 metros para parar.

O caso ocorreu em março de 2014 em Madureira, Zona Norte do Rio. A repercussão foi nacional. A presidente disse que a morte de Cláudia chocou o país. O governador prometeu punições e classificou a ação da polícia como “abominável”. A PM informou que os fatos não condiziam com seus valores, voltados à “preservação da vida e da dignidade humana”.

Passados dez anos, a Justiça deu outro veredicto. Os seis policiais acusados pelo crime foram absolvidos. O juiz Alexandre Abrahão Dias Teixeira, do 3º Tribunal do Júri, considerou que eles agiram em “legítima defesa”, apesar de Cláudia só ter em mãos um copo de café e três notas de R$ 2.

O magistrado escreveu que os PMs atiraram para “repelir injusta agressão”, “incorrendo em erro na execução, atingindo pessoa diversa da pretendida”. Ele também absolveu os réus da acusação de fraude processual. Para a Promotoria, eles desmontaram a cena do crime. Para o juiz, apenas “tentaram socorrer a vítima de imediato”.

A sentença de Teixeira merece ser estudada em faculdades de Direito. Das 31 páginas, 18 se dedicam à transcrição de depoimentos favoráveis aos acusados. Dois são classificados como “excelentes policiais”. Um terceiro, como “oficial tranquilo e cumpridor de ordens”.

Aparentemente, o juiz não se interessou pelo que teriam a dizer o viúvo ou os vizinhos de Cláudia. Na época, todos criticaram a PM e contestaram a versão oficial de tiroteio. Os moradores do Morro da Congonha não têm nome ou voz na sentença. São apenas “populares revoltados”, que “partiram para cima dos policiais” e causaram “tumulto generalizado”.

Teixeira cita nove testemunhas, sendo oito policiais. A exceção é uma enfermeira que dava plantão no Hospital Estadual Carlos Chagas quando a viatura chegou com uma mulher ensanguentada no porta-malas. Não havia mais paciente a socorrer. Cláudia estava morta.

 

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Que tristeza!