Folha de S. Paulo
Isso porém não quer dizer que a política
institucional possa ser ignorada
Tem acontecido com muita frequência. A
paisagem política institucional de um país, que se manteve constante por
décadas, muda de um dia para a noite com o advento de uma nova força política.
"Esta é a noite em que acabou o bipartidarismo em Portugal", anunciou
o líder do
Chega, André Ventura, repercutindo a mesma declaração de ruptura da
velha ordem que se vem repetindo em toda parte desde 2016.
Daí decorrem os registros de inconformidade ou surpresa da maioria política não radical em sociedades de regimes democráticos. A que se seguem indagações sobre em que as democracias estão falhando e o que progressistas e liberais não conseguiram prever.
Estamos todos ainda tentando entender o que
se passa com as democracias hoje, mas compartilho aqui a desconfiança de que
nos habituamos por tempo demais a prestar atenção na dinâmica das forças
políticas nos parlamentos e nos governos, negligenciando as arenas onde as
pessoas discutem e se informam sobre política, como se nesses espaços apenas se
refletisse o que acontece na política institucional. Cada vez mais se prova que
o moinho político das democracias eleitorais não é movido pela estrutura lenta e
convencional da política institucional, mas por representações, narrativas,
imagens públicas, boatos, crenças e convicções, não importa se falsas ou
verdadeiras.
Nessa camada da política, aparentemente
superficial, as forças podem ser organizadas de modo muito diferente. No
Brasil, por exemplo, o lulismo, o bolsonarismo e o identitarismo são as três
forças políticas que mais se fazem notar na esfera pública política. São as que
mais falam e mais se fazem ouvir, são as que mais capturam as imaginações e
mobilizam a energia das pessoas no debate público e na militância.
Já as casas legislativas e os governos se
organizam a partir de outras linhas de força, visto que, por exemplo, o
identitarismo jamais conseguiu traduzir em mandatos a vivacidade que demonstra
no espaço público. Nem o fisiologismo, que explica a maior parte dos partidos,
cargos e mandatos no país, ousaria se apresentar na esfera pública com um
discurso patrimonialista, clientelista ou pró-corrupção que
refletiria sua verdadeira natureza.
A superestrutura da política é um conjunto de
arenas em que as pessoas discutem os assuntos de interesse público, se informam
e constroem identidades políticas, associam-se ou dissociam-se com base em
afinidades ou diferenças ideológicas ou em objetivos comuns, militam, dão uma
forma discursiva aos seus interesses políticos. Não é um mero reflexo da
política institucional, nem pode ser por ela ignorada, pois é daqui que surgem
os votos, o apoio popular a causas, candidatos e partidos, os movimentos políticos
que, em um repentino lance eleitoral, reconfiguram toda a política
institucional.
Subestimar a importância da esfera pública,
particularmente na sua forma digital, é um erro grave. O identitarismo
brasileiro, por exemplo, não tem força eleitoral para conquistar mandatos que
sustentem suas enormes reivindicações, mas é hábil em impactar grupos com
grande influência política. Além disso, contorna a própria incapacidade de
conseguir representação através de uma conveniente simbiose com o lulismo que
lhe permite não só disputar cargos no governo como também usar os mandatos do
petismo como se fossem seus. Há inegável sagacidade nisso.
Isso não quer dizer que a política
institucional possa ser ignorada. Partidos e políticos que surgem de ondas de
indignação e fantasias na esfera pública podem ter um êxito eleitoral de curto
alcance se não se institucionalizam rapidamente ou não conseguirem no próximo
ciclo eleitoral dirigir o fluxo de sentimentos e sensações que movem a massa
para votos, portanto, mandatos.
O segredo da resiliência do bolsonarismo, por
exemplo, foi sua institucionalização em 2022, mesmo tendo Bolsonaro perdido a
eleição presidencial. O bolsonarismo continua produtivo na esfera pública,
usando para isso a energia gerada na fricção em moto contínuo com os
arquirrivais identitários e lulistas, mas, ao mesmo tempo, produziu uma intensa
conversão ideológica dos partidos fisiológicos tradicionais, atraiu para o seu
campo os mandatos evangélicos, além de ter eleito figuras de proa do movimento
social bolsonarista.
Hoje tem base na política institucional,
vigor na esfera política digital e, ao contrário dos identitários de esquerda,
consegue transformar indignação política em mandatos. Quem achava que era só
uma bobagem do WhatsApp e
do YouTube não
devia estar prestando atenção.
*Professor titular da UFBA (Universidade
Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"
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