O Globo
A população andava cansada da inflação e dos
sucessivos planos que só tornavam ainda mais complicada uma situação difícil
De Fernando Henrique Cardoso:
— Não se pode desperdiçar uma crise.
FH deve ter chegado a essa conclusão depois
das diversas crises que enfrentou na elaboração, na implantação e no
desenvolvimento do Plano Real, que completa 30 anos na próxima segunda-feira.
A primeira crise foi o ambiente em torno de
sua nomeação para ministro da Fazenda, em maio de 1993. Seria o quarto ministro
de um presidente fraco, Itamar Franco,
com o país tomado pela hiperinflação. Os preços subiram 27% no mês da posse de
FH, que se tornava o maior e talvez o único ativo de Itamar. Como o próprio
Itamar disse a seu novo ministro: sua nomeação foi muito bem-aceita. FH
entendeu: tornara-se responsável de fato pela política econômica. Na
circunstância, dono de uma crise grave e piorando.
O lado promissor: a população andava cansada da inflação e dos sucessivos planos que só tornavam ainda mais complicada uma situação difícil. Provavelmente, toparia sacrifícios para um programa crível com uma equipe respeitada. Ainda assim, o propósito de FH e de sua então reduzida equipe era modesto: dar uma arrumada na casa, especialmente nas contas públicas, deixando qualquer coisa mais ousada para um futuro governo. O próximo presidente seria eleito em outubro de 1994.
Uma segunda crise mudou tudo. Em setembro de
1993, Itamar, sem conversar nem sequer avisar FH, demitiu o presidente do Banco
Central, Paulo Ximenes, por uma questão boba em torno dos cheques pré-datados.
Era Itamar sendo Itamar, provavelmente instigado pela sua turma para mostrar
quem mandava ali. Para a equipe de FH, tudo acabava ali. O ministro se
demitiria, e todos iriam para casa. Deu o contrário. FH foi conversar com
Itamar e saiu maior ainda: colocou Pedro Malan na presidência do BC, reforçando
seu time, e assumiu controle total de tudo o que se referia à política
econômica.
Como teria sido a conversa? FH nunca entrou
em detalhes, mas Edmar Bacha, seu principal assessor, tem uma boa ideia.
Fernando Henrique deve ter dito: vou embora, a inflação vai estourar mais
forte, e o Congresso votará seu impeachment. Era uma boa previsão. Itamar
entendeu. A equipe de FH também — agora vai, dá para fazer algo maior, tal era
o sentimento. O Plano Real nascia ali.
Na véspera da introdução das notas novinhas
de real, há exatos 30 anos, ainda houve crises. Como conta Rubens Ricupero,
então ministro da Fazenda, já que FH deixara o posto para se candidatar a
presidente, Itamar queria um congelamento de preços, fiscalizado pelos
consumidores, e o tabelamento dos juros. Era a última tentativa de mandar em
alguma coisa. Tudo contrário à base teórica e prática do Real. Então não tem
plano, não tem nada, disseram a ele. Itamar sobraria só e com uma inflação que
atingira espantosos 50% ao mês. Recuou, claro.
Assim o real começou a circular, e FH
elegeu-se presidente, derrotando Lula no
primeiro turno. Outras crises o esperavam. A quebradeira de bancos estaduais e
privados, que viviam de girar dinheiro na inflação, serviu para uma arrumação
geral no sistema financeiro. No fim do primeiro mandato, 1998, a crise dos
países emergentes, que começara nos Tigres Asiáticos, chegou ao Brasil. O país
foi ao FMI buscar
dólares, com a ajuda do então presidente Bill Clinton, que falou com outros
chefes de Estado e conseguiu uma vaquinha de US$ 40 bi para reforçar o caixa do
BC brasileiro.
O real passava por uma crise financeira e
cambial, que não foi desperdiçada. Fez-se outro ajuste de contas públicas e,
sobretudo, ele deixou de ser atrelado ao dólar. Introduziu-se o regime de metas
de inflação. Chegou-se, assim, ao desenho final do tripé macroeconômico:
superávit nas contas públicas; taxa de câmbio flutuante; e metas de inflação. E
incluídas as privatizações.
O tripé está incorporado à cultura econômica,
embora diversos governos posteriores tenham tentado quebrar alguma perna. Lula,
que seguiu o modelo em seu primeiro mandato, agora investe contra as metas de
inflação e não gosta nada de cortar gastos para fazer superávit.
Uma pena. Deu tanto trabalho.
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