Folha de S. Paulo
Qual será o próximo passo? Um PL para o
apedrejamento de mulheres adúlteras?
O Parlamento brasileiro é hoje
predominantemente conservador, de extrema direita e/ou bolsonarista. Como
mandatos parlamentares não se ganham na rifa nem se compram online, e esses em
particular são resultantes do voto popular em eleições livres e limpas, é
provável que um Congresso com essas feições seja sintoma de que também a
população seja bem menos liberal e de esquerda do que há alguns anos.
Os deputados e senadores desse segmento ideológico parecem estar seguros de que representam o Brasil profundo, conservador, religioso e iliberal, que desejam libertar das garras de uma elite política, universitária e judiciária progressista.
Eles propagandeiam esse vínculo presumido com
a população tanto para se convencerem de sua própria missão moral quanto para
persuadirem os que neles votaram, mais por antipetismo do que por qualquer
outra razão, de que o fizeram porque a população também é radical de direita.
Por outro lado, se os brasileiros votaram
majoritariamente em conservadores para as casas legislativas, também elegeram
um presidente de esquerda. E o fizeram com muita consciência, uma vez que o
concorrente rejeitado foi nada menos que o grande líder e símbolo da virada
nacional ao radicalismo de direita. Foi uma deliberada desistência de um
projeto político.
Além disso, não se trata apenas da esquerda,
alternativa para a qual os brasileiros têm olhado com crescente desconfiança,
mas sobretudo da posição liberal (ou progressista, como prefere a esquerda
entre nós). O país avançou muito como uma sociedade de liberdades e direitos,
desde a restauração democrática nos anos 1980. Das telenovelas às decisões
do STF, é
inegável que tivemos nossa primavera progressista, que durou até os protestos
de 2013 e o advento do bolsonarismo que se seguiu. Assim como é claro que o
surgimento de uma extrema direita ultraconservadora é uma feroz reação iliberal
e anti-iluminista a um longo ciclo de avanços liberais.
Isso significa que o Brasil se descobriu não
apenas de direita e conservador mas de extrema direita e reacionário? Não
apenas um país de intensa religiosidade mas religioso a ponto de aceitar que as
crenças de uma religião possam se transformar em leis? Há certamente quem faça
essas passagens todas. Como cético militante, cultivo as minhas desconfianças.
O PL 1904, que
prevê pena equivalente à de homicídio simples para aborto após 22 semanas de
gestação, inclusive em casos de gravidez decorrente de estupro, é um bom teste
de conceito. O PL é a quintessência do esforço legislativo de uma bancada
ultraconservadora de matriz religiosa.
Está nesse projeto tudo o que define a
"via conservadora" nas casas legislativas brasileiras: a convicção de
que uma crença religiosa pode determinar o modo como todos devem viver a
própria vida; a intenção de decidir no Parlamento, e para o lado iliberal,
todas as controvérsias morais que nos dividem; a certeza de que mandatos dão às
maiorias parlamentares o direito de reformar moralmente o país.
A enorme reação pública ao PL parece indicar
que os defensores da hipótese de que o Brasil se sente confortavelmente
representado por partidos e bancadas religiosas conservadoras talvez se tenham
precipitado. De fato, um PL que daria ao país uma das legislações sobre aborto
legal mais duras e atrasadas do mundo precisaria de um nível de consenso social
que a maioria conservadora no Congresso está longe de ter.
A elite conservadora não apenas subestimou a
reação progressista à "via talibã"
proposta como, de fato, está saltando fases. Quer dizer, antes de consolidar-se
e legitimar-se como posição política consistente e orgânica, saltou direto para
a reforma moral do país. Pôs os pés pelas mãos.
A arrogante precipitação da bancada
conservadora na Câmara, não importa o resultado da votação em plenário, não
sairá sem custos na percepção pública. Que urgência nacional se resolve
dificultando o aborto de crianças estupradas, por exemplo? No momento em que o
país precisa resolver urgências reais, essa gente no poder coloca a sua sanha
por uma reforma moral do país acima do seu dever de enfrentar os verdadeiros
problemas nacionais. Não pegou bem.
Segundo, isso dá materialidade ao senso de
perigo resultante de se ter no poder autênticos partidos religiosos. Qual será
o próximo passo? Criar uma polícia moral no modelo iraniano para vigiar e punir
o comportamento feminino? Um PL para o apedrejamento de adúlteras como no Sudão ou
na Somália?
É assim que os conservadores querem ser vistos pela população e pela opinião
pública?
2 comentários:
Senti falta nessa discussão do aborto o comentário da decisão da CNBB entidade máxima da igreja católica brasileira em que emitiu uma carta pública apoiando a PL contra o aborto a partir das 22 semanas de gestação com o lema ;“A mãe e a criança Devem viver e terem vida em abundância “
"...a ponto de aceitar que as crenças de uma religião possam se transformar em leis?" a CNBB também é uma entidade religiosa portanto a pergunta do Prof. Wilson Gomes abrange também a religião católica. É mesmo desejável que as crenças de quaisquer religiões possam se tornar imperativos para TODOS?
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