quarta-feira, 19 de junho de 2024

Wilson Gomes - O PL da reforma moral

Folha de S. Paulo

Qual será o próximo passo? Um PL para o apedrejamento de mulheres adúlteras?

O Parlamento brasileiro é hoje predominantemente conservador, de extrema direita e/ou bolsonarista. Como mandatos parlamentares não se ganham na rifa nem se compram online, e esses em particular são resultantes do voto popular em eleições livres e limpas, é provável que um Congresso com essas feições seja sintoma de que também a população seja bem menos liberal e de esquerda do que há alguns anos.

Os deputados e senadores desse segmento ideológico parecem estar seguros de que representam o Brasil profundo, conservador, religioso e iliberal, que desejam libertar das garras de uma elite política, universitária e judiciária progressista.

Eles propagandeiam esse vínculo presumido com a população tanto para se convencerem de sua própria missão moral quanto para persuadirem os que neles votaram, mais por antipetismo do que por qualquer outra razão, de que o fizeram porque a população também é radical de direita.

Por outro lado, se os brasileiros votaram majoritariamente em conservadores para as casas legislativas, também elegeram um presidente de esquerda. E o fizeram com muita consciência, uma vez que o concorrente rejeitado foi nada menos que o grande líder e símbolo da virada nacional ao radicalismo de direita. Foi uma deliberada desistência de um projeto político.

Além disso, não se trata apenas da esquerda, alternativa para a qual os brasileiros têm olhado com crescente desconfiança, mas sobretudo da posição liberal (ou progressista, como prefere a esquerda entre nós). O país avançou muito como uma sociedade de liberdades e direitos, desde a restauração democrática nos anos 1980. Das telenovelas às decisões do STF, é inegável que tivemos nossa primavera progressista, que durou até os protestos de 2013 e o advento do bolsonarismo que se seguiu. Assim como é claro que o surgimento de uma extrema direita ultraconservadora é uma feroz reação iliberal e anti-iluminista a um longo ciclo de avanços liberais.

Isso significa que o Brasil se descobriu não apenas de direita e conservador mas de extrema direita e reacionário? Não apenas um país de intensa religiosidade mas religioso a ponto de aceitar que as crenças de uma religião possam se transformar em leis? Há certamente quem faça essas passagens todas. Como cético militante, cultivo as minhas desconfianças.

O PL 1904, que prevê pena equivalente à de homicídio simples para aborto após 22 semanas de gestação, inclusive em casos de gravidez decorrente de estupro, é um bom teste de conceito. O PL é a quintessência do esforço legislativo de uma bancada ultraconservadora de matriz religiosa.

Está nesse projeto tudo o que define a "via conservadora" nas casas legislativas brasileiras: a convicção de que uma crença religiosa pode determinar o modo como todos devem viver a própria vida; a intenção de decidir no Parlamento, e para o lado iliberal, todas as controvérsias morais que nos dividem; a certeza de que mandatos dão às maiorias parlamentares o direito de reformar moralmente o país.

A enorme reação pública ao PL parece indicar que os defensores da hipótese de que o Brasil se sente confortavelmente representado por partidos e bancadas religiosas conservadoras talvez se tenham precipitado. De fato, um PL que daria ao país uma das legislações sobre aborto legal mais duras e atrasadas do mundo precisaria de um nível de consenso social que a maioria conservadora no Congresso está longe de ter.

A elite conservadora não apenas subestimou a reação progressista à "via talibã" proposta como, de fato, está saltando fases. Quer dizer, antes de consolidar-se e legitimar-se como posição política consistente e orgânica, saltou direto para a reforma moral do país. Pôs os pés pelas mãos.

A arrogante precipitação da bancada conservadora na Câmara, não importa o resultado da votação em plenário, não sairá sem custos na percepção pública. Que urgência nacional se resolve dificultando o aborto de crianças estupradas, por exemplo? No momento em que o país precisa resolver urgências reais, essa gente no poder coloca a sua sanha por uma reforma moral do país acima do seu dever de enfrentar os verdadeiros problemas nacionais. Não pegou bem.

Segundo, isso dá materialidade ao senso de perigo resultante de se ter no poder autênticos partidos religiosos. Qual será o próximo passo? Criar uma polícia moral no modelo iraniano para vigiar e punir o comportamento feminino? Um PL para o apedrejamento de adúlteras como no Sudão ou na Somália? É assim que os conservadores querem ser vistos pela população e pela opinião pública?

2 comentários:

Anônimo disse...

Senti falta nessa discussão do aborto o comentário da decisão da CNBB entidade máxima da igreja católica brasileira em que emitiu uma carta pública apoiando a PL contra o aborto a partir das 22 semanas de gestação com o lema ;“A mãe e a criança Devem viver e terem vida em abundância “

Anônimo disse...

"...a ponto de aceitar que as crenças de uma religião possam se transformar em leis?" a CNBB também é uma entidade religiosa portanto a pergunta do Prof. Wilson Gomes abrange também a religião católica. É mesmo desejável que as crenças de quaisquer religiões possam se tornar imperativos para TODOS?