quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Entrevista | Joseph Stiglitz - Mercados ‘livres’ sem restrições só geraram crises, diz o Nobel de Economia

Valor Econômico

Vivian Oswaldo / Valor Econômico

As gigantes da tecnologia e os paraísos fiscais, segundo o economista americano, “são exemplos do lado mais sombrio da globalização”

Aos 81 anos, o economista americano Joseph Stiglitz se diz um ativista. Para ele, é impossível ver como o mundo “não funciona, ou funciona de forma injusta, sem se envolver”. Talvez por isso não tenha papas na língua.

Em entrevista ao Valor, o vencedor do Prêmio Nobel de Economia de 2001 e professor da Universidade Columbia afirma que a agenda climática está andando muito devagar, que a conta da transição energética e do desenvolvimento tem que ser paga pelos muito ricos e pelas multinacionais, que, “em parte, tornaram-se tão ricos porque não pagaram a sua parcela justa de impostos”. Neste contexto, o planeta precisa de mais, e não menos, Estado.

“Vemos um populismo perigoso em locais onde o governo fez muito pouco”, ressalta. Stiglitz afirma que o republicano Donald Trump é um grande perigo para os Estados Unidos e para o mundo, assim como as big techs, que, em sua avaliação, aproveitam-se da globalização para se fazer inatingíveis pelas leis. As gigantes da tecnologia e os paraísos fiscais, segundo ele, “são exemplos do lado mais sombrio da globalização”.

Tudo isso o teria levado a escrever seu novo livro: “The Road to Freedom: Economics and the Good Society” (O caminho para a liberdade: economia e a boa sociedade, em tradução livre), lançado em abril deste ano, onde afirma que mercados “livres”, sem restrições, só geraram crises: financeira, dos opioides e da desigualdade.

Valor: Sob a presidência temporária do Brasil, o G20 se prepara para a cúpula de líderes em novembro, no Rio. A plataforma foi importante para enfrentar a crise financeira de 2008. Ela continua relevante para resolver questões globais?

Joseph Stiglitz: No passado, existia a preocupação de que a África, por exemplo, não estava adequadamente representada. A minha sensação é de que precisamos de tantos fóruns quanto pudermos, e que se complementem. A ONU é a forma mais importante para mim. É aquela que o mundo criou para unir todos. Mas é muito, muito grande. Por isso, como no Congresso temos comitês, agrupamentos, o mundo precisa desse tipo de coisa, de agrupamentos de pessoas. Tem o G7, o G20, os Brics. O G20 é claramente muito importante

O setor privado tem muitos pontos fortes, mas temos também de reconhecer suas limitações

Valor: Como enfrentar desafios globais e garantir crescimento?

Stiglitz: Há muitos desafios. Mas, veja bem, não podemos resolver todos os problemas. Podemos fazer progressos em alguns dos mais importantes. O apelo a uma ação mais forte em relação às alterações climáticas é um em que temos progredido muito devagar. Mas, infelizmente, os acontecimentos climáticos nos fazem entender que não podemos esperar. Isso ajuda a motivar ações mais fortes, mais depressa, em relação ao clima. Queria que a covid-19 tivesse tido mais sucesso em motivar reformas no regime de propriedade intelectual.

Valor: Está falando do chamado apartheid da vacina?

Stiglitz: Sim. O Brasil tem sido muito ativo no apelo por reformas no regime de propriedade intelectual, e um dos temas que o presidente Lula enfatiza também é o regime tributário. Trabalho com um grupo chamado Comissão Independente sobre a Reforma do Sistema de Imposto Corporativo Internacional. Acreditamos que a elisão e evasão fiscal são um grande problema global. Aqueles que poderiam fazer contribuições para o desenvolvimento ou justiça social estão evitando a sua responsabilidade. Temos de reformar as leis para evitar isso, ou os segredos dos paraísos fiscais. O progresso da iniciativa por um imposto mínimo global é um bom exemplo. O apelo do G20 à tributação dos multimilionários é outra questão importante em que penso que iremos fazer progressos.

Valor: Serão necessários trilhões de dólares para enfrentar essas questões. De onde devem vir esses recursos?

Stiglitz: O dinheiro só pode vir de onde está o dinheiro. Você não vai fazer com que os pobres paguem. São as corporações multinacionais, os bilionários, os muito ricos, que têm de pagar. Em parte, tornaram-se tão ricos porque não pagaram a sua parcela justa de impostos. Ou seja, o sistema serve para aqueles que evitam impostos e ficam cada vez mais ricos, em geral, empresas com poder de mercado, que se envolvem em algum tipo de abuso. A família Sackler, que ganhou dinheiro com a crise dos opioides, é um exemplo de alguém que ficou muito rico à custa de milhões de vidas nos Estados Unidos. Podemos continuar com a lista. Há muitas pessoas que se tornam muito ricas por meio da exploração de outras pessoas. A gente deveria tentar impedir a exploração, no mínimo tributar as riquezas de quem ganha com essa exploração.

Valor: Uma nova arquitetura financeira internacional inclusiva é possível?

Stiglitz: Existem muitas dimensões de inclusão. Quando penso na inclusão como algo relacionado com a justiça social, neste momento, um aspecto importante passa pela gestão da crise da dívida em muitos países excessivamente endividados. Não temos nenhum sistema para resolver suavemente estas crises. Temos leis de falência. Mas não temos um regime como esse para resolver dívidas soberanas ou transfronteiriças. [...] É obviamente necessário que haja um maior fluxo de recursos para os países em desenvolvimento e mercados emergentes, especialmente para resolver os problemas das alterações climáticas. Para mim, será um esforço conjunto de todos. Muita gente falando em alavancar o setor privado. Acho que isso vai ser importante. Mas, quando se trata de clima, é preciso mais que isso. É aí que os bancos de desenvolvimento precisam de mais força. Eles, para mim, são um instrumento muito importante.

Valor: Qual o papel dos bancos de desenvolvimento?

Stiglitz: O BNDES, o Banco Europeu de Investimento, são bancos muito bem-sucedidos e mostram que um banco de desenvolvimento pode realmente funcionar bem. Passamos por um período em que comprometemos ideologicamente o papel dos bancos de desenvolvimento. Acho que foi errado. O setor privado tende a ter o problema de ser demasiado míope e demasiado avesso ao risco. Os bancos de desenvolvimento podem ter uma visão de longo prazo e assumir riscos maiores, como o associado ao BNDES, que ajudou a desenvolver a Embraer e alguns dos combustíveis à base de cana-de-açúcar, que são muito importantes para evitar as alterações climáticas.

Valor: O setor privado tem o dinheiro, mas não vai consertar o mundo sozinho?

Stiglitz: O setor privado está interessado em lucros. Quando há lucros, entra. Mas não temos um preço para o carbono. Portanto, na ausência do preço do carbono, eles não têm os incentivos certos para aderir às mudanças climáticas. Como sabemos, o setor privado tende a ser muito míope. O clima é um investimento a longo prazo. E o setor privado é excessivamente avesso a risco, e não sabe avaliar o risco. Vimos isso durante a covid-19. No início da guerra na Ucrânia, vimos que o setor privado na Alemanha tornou-se demasiado dependente do gás russo. O setor privado criou mercados que não eram resilientes. O setor privado tem muitos pontos fortes, mas temos também de reconhecer suas limitações, quando falamos em alterações climáticas, ou de questões como a justiça social, investimentos de longo prazo.

Valor: O senhor diz no livro que populistas e ameaças à democracia surgem onde o Estado é menos presente.

Stiglitz: Existe esta ideologia que remonta a (Friederik) Hayek, que falava que Estado demais levaria ao caminho da servidão, à subserviência ao Estado. Milton Friedman escreveu num livro chamado “Liberdade do capitalismo” que se você tiver um Estado grande perderá sua liberdade. Sabemos que essas ideias agora estão erradas. Vemos um populismo perigoso em locais onde o governo fez muito pouco, e não muito. Não vemos tanto isso na Suécia, na Dinamarca ou na Noruega. Vemos nos Estados Unidos, e nos Estados Unidos, naqueles lugares onde as pessoas não têm emprego, a saúde é fraca, não há oportunidades. Então, você tem esse tipo de desespero. E é a partir desse desespero que as pessoas recorrem a gente como Trump ou Bolsonaro. Então, acho que há vários erros importantes que esses caras cometeram. O primeiro é que superestimaram a eficiência do mercado. Não reconheceram os problemas que já mencionei, a exploração do poder de mercado, exploração de outras pessoas, exploração de recursos naturais. Subestimaram a importância da nossa interdependência. Quando vivemos de forma integrada, se eu não me vacinar ou usar máscaras, há uma chance de você morrer. São ações que você sabe que podem te machucar. Se eu carregar uma AK-47, você pode morrer. Isso pode prejudicar sua liberdade. E é tão óbvio, mas eles simplesmente não reconheceram isso. Se eu poluir o ar e você tiver asma, você morre. A liberdade de uma pessoa é a falta de liberdade de outra.

Valor: E a geopolítica? Estados Unidos e Europa, Rússia, Oriente Médio e uma guerra não declarada com a China. Como trabalhar juntos num mundo polarizado como o nosso?

Stiglitz: Fico feliz que você tenha levantado isso. Infelizmente, vivemos em um mundo onde existem maus atores. Sempre fui alguém que criticou os gastos militares, mas quando se vê que alguém como Putin poderia assumir o controle do meu país, e se eu morasse na Europa, sentiria isso ainda mais… Infelizmente, você precisa de gastos com ações coletivas em defesa para se proteger. Teremos que aprender a cooperar e competir ao mesmo tempo. Esse é particularmente o caso com a China. Precisamos cooperar com a China nas alterações climáticas. Mas temos de expressar a nossa visão de que consideramos que a democracia é um sistema político melhor. Que pensamos que o nosso sistema econômico tem um grande papel para a iniciativa privada, mas também um grande papel para o governo, e que conseguimos um equilíbrio melhor do que o da China. Acredito no proselitismo. Deveríamos tentar convencer os países da América Latina e da África de que a nossa forma de fazer isso é melhor, mas em parte mostrando que o nosso sistema funciona melhor para nós.

Valor: As realidades são muito diferentes. Há níveis de desenvolvimento distintos.

Stiglitz: Sim. As realidades podem ser muito diferentes, e não é possível adaptar as regras de um país a outro. Mas de fato acredito num modelo em que a democracia esteja no centro e onde haja um equilíbrio cuidadoso dentro da sociedade sobre ação coletiva, oportunidades privadas e assim por diante. Um equilíbrio melhor do que o que temos agora nos Estados Unidos. Foi por isso que escrevi meu livro. Pensei num equilíbrio bem diferente desse e da China.

Valor: Como ficaria esse equilíbrio se Donald Trump vencer?

Stiglitz: Escrevi o livro em parte por causa disso. Acho que ele é um perigo real para os Estados Unidos e para o mundo. Não creio que tenha uma concepção intelectual clara. Mas acho que é um populista autoritário. Acredito que o nosso progresso, nossos avanços ao longo dos últimos 250 anos estão muito associados às ideias de raciocínio do Iluminismo, à reflexão sobre a forma como organizamos a nossa sociedade, a ciência. Ele nega a importância da ciência, do raciocínio. Por isso é tão perigoso.

Valor: O mundo debate o papel das grandes plataformas digitais, das big techs. O Brasil foi o primeiro país democrático a banir o X de Elon Musk.

Stiglitz: As big techs representam um perigo real para a nossa sociedade. Acho que estão abusando do seu poder. Uma maneira de pensar sobre isso é que nunca tivemos uma posição absolutista sobre a liberdade de expressão. Você não pode acender fogo em um teatro lotado. Restringimos pornografia infantil. A Alemanha, por uma boa razão, restringe o discurso de ódio porque tiveram uma experiência muito má na Segunda Guerra Mundial. As novas tecnologias ampliaram a capacidade de espalhar erros e desinformação, alguns dos quais muito perigosos para a nossa sociedade, de uma forma ou de outra. [...] Então, nenhuma pessoa, seja Elon Musk, a pessoa mais rica do mundo, ou quem quer que seja, deve se considerar acima da lei. E Musk disse basicamente que está acima da lei. Ele diz ‘Você não tem o direito de me regular’. E está absolutamente errado.

Valor: Muitos dizem que o senhor tornou-se ativista. O senhor se considera um?

Stiglitz: (sorri) Eu me vejo tanto como acadêmico quanto como ativista. Claro que... se você definir um ativista como alguém que está tentando mudar a sociedade, sim, sou. É muito difícil ver como as coisas não funcionam e, em alguns casos, como funcionam de forma injusta, e não se envolver.

 

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