O Estado de S. Paulo
Tentativas de ‘backsliding’ foram frustradas
pelas organizações de controle e pela sociedade civil
Tem sido argumentado que as democracias no
século 21 não mais morreriam por meio de golpes militares. De acordo com essas
novas interpretações, democracias se fragilizariam por um processo muito mais
insidioso de erosão paulatina das estruturas e instituições democráticas,
chamado de democratic backsliding, paradoxalmente a partir de eleições
democráticas de líderes carismáticos, porém com tendências autocráticas.
Contrariando essa nova tendência internacional, o ex-presidente Jair Bolsonaro, em conluio com oficiais de alta patente do Exército brasileiro, teria supostamente tentado um golpe à moda antiga. Essas são as conclusões das investigações que compõem o extenso relatório da Polícia Federal (PF) que revela um esquema golpista militar clássico, com planos inclusive de sequestrar e de matar o então recém eleito presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, seu vice-presidente, Geraldo Alckmin, e o ministro do STF Alexandre de Moraes.
No artigo seminal On democratic backsliding,
que popularizou o termo e a teoria moderna de erosão democrática, Nancy Bermeo
identifica três variedades de backsliding que se tornaram mais prevalentes no
novo século em substituição a golpes clássicos do século passado.
A primeira seria o que a autora chama de
promissory coups, quando autocratas justificariam a retirada do poder de um
governo legitimamente eleito sob a argumentação de defesa da legalidade
democrática com a promessa de realizar novas eleições e de restaurar a
democracia o mais rápido possível. Ou seja, seria enfatizada a natureza
temporária da intervenção e seu enquadramento como um passo necessário em
direção a uma suposta nova e superior ordem democrática.
A segunda variante de backsliding seria o
executive aggrandizement, quando não existiria a necessidade de substituição do
Executivo no poder, mas de seu fortalecimento paulatino, acompanhado do
enfraquecimento progressivo das organizações de controle e da capacidade da
oposição de desafiar as preferências do Executivo. Esse processo de
desmantelamento das organizações de controle do Executivo seria,
paradoxalmente, realizado por meio de maiorias episódicas em canais
supostamente legais, tais como assembleias constituintes recém-eleitas e/ou
referendos populares.
Por último, a terceira forma de backsliding
ocorreria por meio de manipulações estratégicas do processo eleitoral. Bermeo
argumenta que tais manipulações podem adquirir várias formas que venham a
favorecer os interesses do incumbente de permanecer no poder. A autora destaca,
por exemplo, a estratégia de desacreditar o processo eleitoral jogando dúvidas
sobre a sua legitimidade ao levantar riscos infundados de fraude, dificultar
acesso aos meios de comunicação, utilizar recursos de campanha de forma desproporcional,
criar empecilhos para que setores de oposição disputem as eleições, alterar as
regras eleitorais etc.
Quando observarmos atentamente o governo
Bolsonaro, podemos identificar que além do golpe clássico malsucedido que
supostamente tentou implementar após ser derrotado nas eleições de 2022, ele
fez uso de várias tentativas de backsliding que também foram sistematicamente
frustradas pelas organizações de controle e pela sociedade brasileira.
Bolsonaro, por exemplo, tentou interferir na
PF nomeando Alexandre Ramagem como seu novo diretor ao argumentar que “não
poderia ser surpreendido pela imprensa... eu tenho uma PF que não me dá
informações”. Liderou campanha contra as urnas eletrônicas argumentando o risco
de fraude eleitoral. Organizou reunião com embaixadores de vários países no
Palácio do Planalto, quando atacou diretamente ministros do TSE e do STF, além
de levantar suspeitas sobre as urnas eletrônicas sem apresentar evidências
concretas. Formalmente pediu o impeachment do ministro do STF e então
presidente do TSE, Alexandre de Moraes, e ameaçou também pedir o impeachment do
ministro Luís Roberto Barroso.
A lista de iniciativas iliberais é extensa e,
provavelmente, o leitor dirá, com razão, que devo ter esquecido de algum outro
exemplo importante. Mas o ponto a ser destacado é que, ao invés de seguir uma
única estratégia de enfraquecimento da democracia, Bolsonaro fez uso de um mix
de estratégias autocráticas sequenciadas. Inicialmente, tentou erodir a
democracia. Mas quando percebeu que não seria bem-sucedido com as suas várias
iniciativas de backsliding, partiu para uma estratégia derradeira de golpe militar
clássico, comum ao século passado que, além de plenamente rechaçado pelas
instituições, provavelmente acarretará punições judiciais.
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