quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

O papel dos símbolos – Roberto DaMatta

O Globo

A parede de um STF consciente do princípio da equidade deveria ser adornada com símbolos de outras religiões, além da cruz

Símbolos são coisas que representam outras coisas. Um sinal gráfico ou uma imagem podem representar um universo de ideias ou uma afinidade, filiação ou associação com entidades coletivas como partidos, crenças ou nações.

Simbolizar por meio de brasões tem o dom de concretizar crenças difíceis de resumir, como a cruz, as Armas Nacionais do Brasil e o Estado Democrático de Direito.

Escrevo isso a propósito da seguinte notícia:

— Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) formaram maioria nesta segunda-feira (25) a favor da validade da presença de símbolos religiosos em prédios governamentais, desde que a finalidade seja manifestar a tradição cultural da sociedade. O recurso que questiona a exposição desses símbolos em órgãos públicos, especialmente em unidades de atendimento ao público, está sendo analisado em sessão virtual. A controvérsia gira em torno de direitos constitucionais, como a liberdade religiosa e o princípio do Estado laico — que estabelece a neutralidade do Poder Público diante de concepções religiosas.

O parecer, com a devida vênia, carece de bom senso sociológico e de uma perspectiva histórico-cultural. O Estado laico nasce com o universalismo republicano e igualitário. Ora, é cristalino que não se pode permanecer “laico” estampando no salão nobre de uma Suprema Corte somente o símbolo da tradição cristã.

Alinhar-se constitucionalmente ao laico ou secular significa não pertencer a nenhum credo, exceto a “religião civil” de Jean-Jacques Rousseau. No contexto do Estado Democrático de Direito, demanda ser independente de toda influência ou determinação de quaisquer ordens — seja ideológica, afetiva, compadresca ou religiosa.

Tais requerimentos aqui arrolados por um velho estudioso de sistemas sociais são fáceis de adotar no papel, mas árduos de cumprir. Em nenhum sistema social humano é fácil buscar uma ética de isenção numa concepção de Justiça impessoal, legal e racional, obviamente inimiga do familismo habitual que relativiza a lei com uma aplicabilidade variável e dependente de pessoas. Numa Justiça impessoal, porém, há redistribuição. Ela é realizada por um distante e altivo tribunal, em contraste com as anistias e julgamentos que ocorrem nas Cortes vingativas, governadas pela ética do “dar o troco” ou do “agora ele vai ver” e do “esse é especial”...

O fato de valores serem ideais não significa que não possam ser perseguidos, estimulados e, sobretudo, honrados. O sistema de Justiça nacional, porém, insiste em adotar ideais duríssimos de praticar — acabar com a pobreza, governar para todos e não para um partido, grupo ou classe social, taxar de acordo com o ganho, respeitar todas as crenças porque somos uma nação de cidadãos livres... Isso sem abandonar ou controlar nosso familiar cinismo estrutural de ser eleito prometendo “cuidar” dos pobres e famintos, mas ter todas as mordomias e residir em palácios porque, convenhamos, ninguém é de ferro!

O espaço proíbe maiores especulações, mas o ideal da secularização compromete e exige o universalismo da lei que vale para todos. Regra de ouro que obriga a pensar nos interesses e no bem-estar do todo, inibindo a hipocrisia de estar bem tanto com o partido quanto com o sistema e o país.

A decisão do STF adotando a sagrada cruz é inadequada porque vai além do historicamente razoável e sobretudo porque a Santa Madre Igreja foi a religião oficial do Brasil. Um Brasil aristocrático e escravocrata sem dúvida imaginava uma democracia relativa a pessoas e prerrogativas, tornando a igualdade algo maleável. Um viés, aliás, vigente.

A parede de um STF efetivamente consciente do princípio da equidade deveria ser também adornada com símbolos de outras denominações religiosas, principalmente das religiões afro-brasileiras, até hoje discriminadas. A ausência de compreensão cultural do que significa o laico, ou o secular, não vai bem em tal nível de autoridade.

Autoridade, se assim me é permitido terminar, que se sustenta pela adesão ao igualitarismo e pelo paradoxal empenho de ficar fora e dentro do mundo. O justo oposto do comportamento deste intemerato STF.

 

Um comentário:

Anônimo disse...

A pilantragem grassa.
Deputados e senadores não querem obediência às regras do STF;
são uns FDP.
Governador não quer obediência às regras do Ministério da Justiça; é um FDP.
O STF deveria adotar o porrete como mais um símbolo aparente, além da cruz.
Quem sabe serviria para dissuadir a desobediência de uns e outros FDP's por aí...